Os Problemas da Filosofia
Capítulo XV
Tendo
agora chegado ao término de nossa breve e incompletíssima revisão dos problemas
da filosofia, será conveniente considerar, para concluir, qual é o valor da
filosofia e por que ela deve ser estudada. É da maior importância considerar
esta questão, em vista do fato de que muitos homens, sob a influência da
ciência e dos negócios práticos, propendem a duvidar se a filosofia é algo
melhor que um inocente mas inútil passatempo, com distinções sutis e
controvérsias sobre questões em que o conhecimento é impossível. Esta
visão da filosofia parece resultar, em parte, de uma concepção errada dos fins
da vida humana e em parte de uma concepção errada sobre o tipo de bens que a
filosofia empenha-se em buscar. As ciências físicas, por meio de invenções, são
úteis para inumeráveis pessoas que a ignoram completamente; e por isso o estudo
das ciências físicas é recomendável não somente, ou principalmente, por causa
dos efeitos sobre os estudantes, mas antes por causa dos efeitos sobre a
humanidade em geral. É esta utilidade que faz parte da filosofia. Se o estudo
de filosofia tem algum valor para outras pessoas além de para os estudantes de
filosofia, deve ser somente indiretamente, através de seus efeitos sobre as
vidas daqueles que a estudam. Portanto, é em seus efeitos, se é que ela tem
algum, que se deve procurar o valor da filosofia.
Mas,
além disso, se não quisermos fracassar em nosso esforço para determinar o valor
da filosofia, devemos em primeiro lugar libertar nossas mentes dos preconceitos
dos que são incorretamente chamados homens práticos. O homem prático, como esta
palavra é frequentemente usada, é alguém que reconhece apenas necessidades
materiais, que acha que o homem deve ter alimento para o corpo, mas se esquece
que é necessário prover alimento para o espírito. Se todos os homens estivessem
bem; se a pobreza e as enfermidades tivessem já sido reduzidas o mais possível,
ainda ficaria muito por fazer para produzir uma sociedade verdadeiramente
válida; e até no mundo existente os bens do espírito são pelo menos tão
importantes quanto os bens materiais. É exclusivamente entre os bens do
espírito que o valor da filosofia deve ser procurado; e somente aqueles que não
são indiferentes a esses bens podem persuadir-se de que o estudo da filosofia
não é perda de tempo.
A
filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o conhecimento.
O conhecimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que confere
unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um exame
crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos preconceitos e de
nossas crenças. Mas não se pode dizer, no entanto, que a filosofia tenha tido
algum grande êxito na sua tentativa de fornecer respostas definitivas a seus
problemas. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogista, a um
historiador ou a qualquer outro cientista, que definido corpo de verdades foi
estabelecido pela sua ciência, sua resposta durará tanto tempo quanto
estivermos dispostos a lhe dar ouvidos. Mas se fizermos essa mesma pergunta a
um filósofo, ele terá que confessar, se for sincero, que a filosofia não tem
alcançado resultados positivos tais como tem sido alcançados por outras
ciências. É verdade que isso se explica, em parte, pelo fato de que, mal se
torna possível um conhecimento preciso naquilo que diz respeito a determinado
assunto, este assunto deixa de ser chamado de filosofia, e torna-se uma ciência
especial. Todo o estudo dos corpos celestes, que hoje pertence à Astronomia, se
incluía outrora na filosofia; a grande obra de Newton tem por título:
Princípios matemáticos da filosofia natural. De maneira semelhante, o estudo da
mente humana, que era uma parte da filosofia, está hoje separado da filosofia e
tornou-se a ciência da psicologia. Assim, em grande medida, a incerteza da
filosofia é mais aparente do que real: aquelas questões para as quais já se tem
respostas positivas vão sendo colocadas nas ciências, ao passo que aquelas para
as quais não foi encontrada até o presente nenhuma resposta exata, continuam a
constituir esse resíduo, que é chamado de filosofia.
Isto
é, no entanto, só uma parte do que é verdade quanto à incerteza da filosofia.
Existem muitas questões ainda — e entre elas aquelas que são do mais profundo
interesse para a nossa vida espiritual — que, na medida em que podemos ver,
deverão permanecer insolúveis para o intelecto humano, a menos que seus poderes
se tornem de uma ordem inteiramente diferente daquela que são atualmente. O
universo tem alguma unidade de plano e objetivo, ou ele é um concurso fortuito
de átomos? É a consciência uma parte permanente do universo, dando-nos
esperança de um aumento indefinido da sabedoria, ou ela não passa de
transitório acidente sobre um pequeno planeta, onde a vida acabará por se
tornar impossível? São o bem e o mal importantes para o universo ou somente
para o homem? Tais questões são colocadas pela filosofia, e respondidas de
diversas maneiras por vários filósofos. Mas, parece que se as respostas são de
algum modo descobertas ou não, nenhuma das respostas sugeridas pela filosofia
pode ser demonstrada como verdadeira. E, no entanto, por fraca que seja a esperança
de vir a descobrir uma resposta, é parte do papel da filosofia continuar a
examinar tais questões, tornar-nos conscientes da sua importância, examinar
todas as suas abordagens, mantendo vivo o interesse especulativo pelo universo,
que correríamos o risco de deixar morrer se nos confinássemos aos conhecimentos
definitivamente determináveis.
Muitos
filósofos, é verdade, sustentaram que a filosofia poderia estabelecer a verdade
de certas respostas a tais questões fundamentais. Eles supuseram que o que é
mais importante no campo das crenças religiosas pode ser provado como
verdadeiro por meio de estritas demonstrações. A fim de julgar tais tentativas,
é necessário fazer uma investigação sobre o conhecimento humano, e formar uma
opinião quanto a seus métodos e suas limitações. Sobre tais assuntos é
insensato nos pronunciarmos dogmaticamente. Porém, se as investigações de
nossos capítulos anteriores não nos induziram ao erro, seremos forçados a
renunciar à esperança de descobrir provas filosóficas para as crenças
religiosas. Portanto, não podemos incluir como parte do valor da filosofia
qualquer série de respostas definidas a tais questões. Mais uma vez, portanto,
o valor da filosofia não depende de um suposto corpo de conhecimento
definitivamente assegurável, que possa ser adquirido por aqueles que a estudam.
O
valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua
própria incerteza. O homem que não tem algumas noções de filosofia caminha pela
vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais
de sua época e do seu país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem
a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo
tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não
levantam problemas e as possibilidades infamiliares são desdenhosamente
rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos
damos conta (como vimos nos primeiros capítulos deste livro) de que até as
coisas mais ordinárias conduzem a problemas para os quais somente respostas
muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer
com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria
levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam nossos
pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua
nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito
nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o dogmatismo
um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões
da dúvida libertadora; e vivifica nosso sentimento de admiração, ao mostrar as
coisas familiares num determinado aspecto não familiar.
Além
de sua utilidade ao mostrar insuspeitas possibilidades, a filosofia tem um
valor — talvez seu principal valor — por causa da grandeza dos objetos que ela
contempla, e da liberdade proveniente da visão rigorosa e pessoal resultante de
sua contemplação. A vida do homem reduzido ao instinto encerra-se no círculo de
seus interesses particulares; a família e os amigos podem ser incluídos, mas o
resto do mundo para ele não conta, exceto na medida em que ele pode ajudar ou
impedir o que surge dentro do círculo dos desejos instintivos. Em tal vida
existe alguma coisa que é febril e limitada, em comparação com a qual a vida
filosófica é serena e livre. Situado em meio de um mundo poderoso e vasto que
mais cedo ou mais tarde deverá deitar nosso mundo privado em ruínas, o mundo
privado dos interesses instintivos é muito pequeno. A não ser que ampliemos
nosso interesse de maneira a incluir todo o mundo externo, ficaremos como uma
guarnição numa praça sitiada, sabendo que o inimigo não a deixará fugir e que a
capitulação final é inevitável. Não há paz em tal vida, mas uma luta contínua
entre a insistência do desejo e a impotência da vontade. De uma maneira ou de
outra, se pretendemos uma vida grande e livre, devemos escapar desta prisão e
desta luta.
Uma
válvula de escape é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica não
divide, em suas investigações mais amplas, o universo em dois campos hostis:
amigos e inimigos, aliados e adversários, bons e maus; ela encara o todo
imparcialmente. A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o
restante do universo é semelhante ao homem. Toda aquisição de conhecimento é um
alargamento do eu, mas este alargamento é melhor alcançado quando não é
procurado diretamente. Este alargamento é obtido quando o desejo de
conhecimento é somente operativo, por um estudo que não deseja previamente que
seus objetos tenham este ou aquele caráter, mas adapte o eu aos caracteres que
ele encontra em seus objetos. Esse alargamento doeu não é obtido quando,
tomando o eu como ele é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este eu
que seu conhecimento é possível sem qualquer aceitação do que parece estranho.
O desejo para provar isto é uma forma de egotismo, é um obstáculo para o
crescimento do eu que ele deseja, e do qual o eu sabe que é capaz. O egotismo,
na especulação filosófica como em tudo o mais, vê o mundo como um meio para
seus próprios fins; assim, ele faz do mundo menos caso do que faz do eu, e o eu
coloca limites para a grandeza de seus bens. Na contemplação, pelo contrário,
partimos do não-eu, e por meio de sua grandeza os limites do eusão ampliados;
através da infinidade do universo, a mente que o contempla participa um pouco
da infinidade.
Por
esta razão a grandeza da alma não é promovida por aquelas filosofias que
assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do eu com o
não-eu. Como toda união, ela é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por
qualquer tentativa de forçar o universo em conformidade com o que descobrimos
em nós mesmos. Existe uma tendência filosófica muito difundida em relação a
visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas; que a verdade é
construção humana; que espaço e tempo, e o mundo dos universais, são
propriedades da mente, e que, se existe alguma coisa que não seja criada pela
mente, é algo incognoscível e de nenhuma importância para nós. Esta visão, se
nossas discussões precedentes forem corretas, não é verdadeira; mas além de não
ser verdadeira, ela tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo
aquilo que lhe dá valor, visto que ela aprisiona a contemplação do eu. O que
tal visão chama conhecimento não é uma união com o não-eu, mas uma série de
preconceitos, hábitos e desejos, que compõem um impenetrável véu entre nós e o
mundo para além de nós. O homem que se compraz em tal teoria do conhecimento
humano assemelha-se ao homem que nunca abandona seu círculo doméstico por
receio de que fora dele sua palavra não seja lei.
A
verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra sua satisfação no
próprio alargamento do não-eu, em toda coisa que engrandece os objetos
contemplados, e desse modo o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo
aquilo que é pessoal e privado, tudo o que depende do hábito, do autointeresse
ou desejo, deforma o objeto, e, portanto, prejudica a união que a inteligência
busca. Levantando uma barreira entre o sujeito e o objeto, as coisas pessoais e
privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O livre intelecto enxergará
assim como Deus poderia ver: sem um aqui e agora; sem esperança e sem medo;
isento das crenças habituais e preconceitos tradicionais; calmamente,
desapaixonadamente, com o único e exclusivo desejo de conhecimento —
conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo quanto é possível a um
homem alcançar. Por isso, o espírito livre valorizará mais o conhecimento
abstrato e universal em que não entram os acidentes da história particular, que
ao conhecimento trazido pelos sentidos, e dependente — como tal conhecimento
deve ser — de um ponto de vista pessoal e exclusivo, e de um corpo cujos órgãos
dos sentidos distorcem tanto quanto revelam.
A
mente que se tornou acostumada com a liberdade e imparcialidade da contemplação
filosófica preservará alguma coisa da mesma liberdade e imparcialidade no mundo
da ação e emoção. Ela encarará seus objetivos e desejos como partes do Todo,
com a ausência da insistência que resulta de considerá-los como fragmentos
infinitesimais num mundo em que todo o resto não é afetado por qualquer uma das
ações dos homens. A imparcialidade que, na contemplação, é o desejo extremo
pela verdade, é aquela mesma qualidade espiritual que na ação é a justiça, e na
emoção é o amor universal que pode ser dado a todos e não só aos que são
considerados úteis ou admiráveis. Assim, a contemplação amplia não somente os
objetos de nossos pensamentos, mas também os objetos de nossas ações e nossos
sentimentos: ela nos torna cidadãos do universo, não somente de uma cidade
entre muros em estado de guerra com tudo o mais. Nesta qualidade de cidadão do
mundo consiste a verdadeira liberdade humana, que nos tira da prisão das
mesquinhas esperanças e medos.
Enfim,
para resumir a discussão do valor da filosofia, ela deve ser estudada, não em
virtude de algumas respostas definitivas às suas questões, visto que nenhuma
resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida como verdadeira, mas
sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais questões alargam nossa
concepção do que é possível, enriquecem nossa imaginação intelectual e diminuem
nossa arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas acima de tudo
porque através da grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente
também se torna grande, e se torna capaz daquela união com o universo que
constitui seu bem supremo.
Tradução: Jaimir Conte
Tradução: Jaimir Conte
FONTE:
Nenhum comentário:
Postar um comentário