sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Não se pode explicar o universo sem Deus


Por John Lennox 
Não restam dúvidas de que Stephen Hawking é intelectualmente destemido como um herói da Física. E em seu último livro, o notável físico propõe uma audaciosa mudança na crença religiosa tradicional na criação divina do universo.
Conforme Hawking, as leis da física, não a vontade de Deus, proveem a explicação real de como a vida na Terra veio a existir. O Big Bang, ele argumenta, foi a inevitável consequência daquelas leis ‘porque há uma lei como a gravidade, o universo pode e quis criar a si mesmo do nada.’
Desafortunadamente, enquanto o argumento de Hawking está sendo saudado como controverso e revolucionário, ele dificilmente seria novo.
Por anos, outros cientistas tem feito afirmações semelhantes, sustentando que o assombroso, a criativadade sofisticada do mundo ao nosso redor, pode ser interpretado somente com referência às leis físicas, assim como a gravidade.
Isto é uma abordagem simplista, ainda que em nosso época secularizada seja a única que aparenta ter ressonância com um ceticismo público.
Mas, como cientista e cristão simultaneamente, eu gostaria de dizer que a afirmação de Hawking é equivocada. Ele nos pede para escolher entre Deus e as leis físicas, como se eles estivessem necessariamente em conflito mútuo.
Porém, contrariamente ao que Hawking declara, leis físicas nunca podem prover uma completa explanação do universo. As próprias leis não criaram nada; elas meramente são uma descrição do que acontece sob certas condições.
O que parece que Hawking fez foi confundir leis com a agente. Seu chamado a nós para escolhermos entre Deus e as leis é quase como alguém nos exigir para optar entre o engenheiro aeronáutico Sir Frank Whittle e as leis da física para explicar o mecanismo do avião.
Esta é a confusão de categoria. As leis da física podem explicar como o mecanismo do avião funciona, mas alguém tem de construir, por em funcionamento e dar a partida. O avião não poderia ser criado sem as leis da física por si mesmas – todavia, para o desenvolvimento e criação, precisa-se do gênio de Whittle como seu agente.
De modo similar, as leis da física nunca poderiam ter constuído atualmente o universo. Algum agente deve ter se envolvido.
Para usar uma simples analogia: as leis de Isaac Newton de movimento em si mesmas nunca fizeram uma bola de sinuca atravessar o carpete verde, o que somente pode ser feito por pessoas usando o taco de sinuca e as ações de suas mãos.
O argumento de Hawking me parece até muito mais ilógico quando ele diz que a existência da gravidade torna a criação do universo foi inevitável. Mas como poderia a gravidade existir em primeiro lugar? Quem a pôs ali? E qual foi a força criativa por trás de seu início?
De forma análoga, quando Hawking argumenta, em apoio à sua teoria de geração espontânea, que isto era somente necessário para ‘o azul tocar o papel’ para ser iluminado para ‘deixar o universo vir’, a questão deve ser: de onde vem este azul que toca o papel? E quem o fez, se não Deus?
Muito da racionalidade que se segue ao argumento de Hawking engana-se com a ideia de que há um conflito aprofundado entre Ciência e Religião. Mas reconheço que não há um desacordo entre eles.
Para mim, como um religioso cristão, a beleza das leis científicas somente reforça minha fé em uma inteligência, força divina e criativa em operação. No mais, eu entendo Ciência, no mais, eu creio em Deus por causa da maravilha na abrangência, sofisticação e integridade de sua criação.
A verdadeira razão para a Ciência florescer tão vigorosamente no XVI e XVII séculos foi precisamente devido à crença de que as leis da natureza, as quais foram então descobertas e definidas, reflete a influência de uma divina legislação.
Um dos temas fundamentais do Cristianismo é que o universo foi feito de acordo com um Planejador racional e inteligente. A fé cristã atualmente proporciona perfeito senso científico.
Alguns anos atrás, o cientista Joseph Needham fez um estudo épico do desenvolvimento tecnológico na China. Ele queria descobrir por que a China, por todos os seus precoces dons de inovação, tinha falhado por estar tão atrás da Europa em seu desenvolvimento da Ciência.
Ele relutantemente chegou à conclusão de que a Ciência europeia tinha sido estimulada pela disseminada crença na racional força criativa, conhecida como Deus, a qual fez todas as leis científicas compreensíveis.
Não obstante, Hawking, como muitos outros críticos da Religião, quer que creiamos que não somos nada, mas uma aleatória coleção de moléculas, o produto final de um processo não-intencional.
Se verdadeiro, isto poderia indeterminar quanta racionalidade nós precisamos para estudar a Ciência. Se o cérebro fosse realmente o resultado de um processo não-dirigido, então não há razão para crer em sua capacidade para nos dizer a verdade.
Nós vivemos em uma época de informação. Quando nós vemos algumas letras do alfabeto escrevendo nosso nome na areia, imediatamente nos sentimos responsáveis em reconhecer o trabalho de um agente inteligente. Como muito mais, provavelmente, então, estaria um criador inteligente por trás do DNA humano, o colossal banco de dados biológico que contém não mais que 3,5 bilhões de ‘letras’?
É fascinante que Hawking, em ataque à religião, sente-se compelido a colocar tanta ênfase na teoria do Big Bang. Porque, por mais que os não-crentes não gostem disto, o Big Bang combina exatamente com a narrativa da criação cristã.
Isto porque, antes do Big Bang se tornar usual, vários cientistas foram forçados a admitir isto, apesar disto parecer se alinhar à história da Bíblia. Alguns aderiram à visão aristotélica do ‘universo eterno’ sem início ou fim; mas esta teoria, e recentes variantes dela, estão agora profundamente desacreditadas.
Mas apoio à existência de Deus está muito além da realidade da ciência. Dentro da fé cristã, há também a poderosa evidência de que Deus Se revelou à Humanidade através de Jesus, há dois milênios. Isto é tão documentado não apenas nas Escrituras e em outros testemunhos, mas igualmente na fortuna das descobertas arqueológicas.
Sendo assim, as experiências religiosas de milhões de crentes não podem claramente estar enganadas. Eu mesmo e minha própria família podemos testemunhar sobre a influência que a fé tem em nossas vidas, algo que desafia a ideia de que não somos nada mais do que uma coleção aleatória de moléculas.
É tão forte quanto óbvia a realidade de que nós somos seres morais, capazes de entender a diferença entre certo e errado. Não há rota científica para tais conceituações éticas.
A física não pode inspirar nosso discernimento dos outros, ou do espírito de altruísmo que existe na sociedade humana desde a aurora do tempo.
A existência de um conjunto comum de valores morais aponta para a existência de uma força trascendente além das meras leis físicas. Assim, a mensagem do Ateísmo tem sempre sido curiosamente a única depressiva, retratando-nos como criaturas egoístas inclinadas a nada mais do que sobrevivência e auto-gratificação.
Hawking também pensa que a existência potencial de outras formas de vida no universo mina a tradicional convicção religiosa que nós somos o único motivo para Deus criar o planeta. Mas não há prova de que outras formas de vida existam fora, e Hawking certamente não presenciou nenhuma.
Sempre me diverte que o Ateísmo geralmente argumente pela existência de inteligência extra-terrestre além da Terra. Assim, eles também estão somente ansiosos para denunciar a possibilidade, a qual nós já aceitamos, de um vasto e inteligente Ser externo ao mundo: Deus.
O novo fuzilamento de Hawking não pode abalar os fundamentos da fé que está baseada em evidência.
John Lennox, apologista cristão, é professor de Matemática em Oxford. Ficou conhecido principalmente por debater com Richard Dawkins, em Outubro de 2007, em um evento patrocinado pela entidade cristã Fixed Point Foundation. O artigo original de Lennox foi publicado no Dailymail . A despeito da qualidade de sua argumentação, a única ressalva seria sobre o Big Bang: embora seja uma explicação teleológica, a teoria contraria alguns dos dados bíblicos.]

O AMOR QUE NÃO AMEI

Qual o nome desse amor? 
Insisti em não perguntar ...
Até que descobri, sem ouvir ele me falar
Me aproximar dele? Era o que sempre queria, 
mas não sou bom nisso, já me diziam ... 
Mas ainda assim, insistia em me aproximar ,
lhe admirar, e de me apaixonar,
Enquanto ela nem mesmo sabia que eu existia,
eu estava lá,
procurando me aproximar

Nas vezes que eu a contemplava, numa dessas a vejo
acompanhada de alguém,
alguém especial, eu pensei,
que a fazia feliz, como eu queria fazer,
não precisa da minha presença mais, pra que??

Adiei, adiei em te conhecer,
calculei, calculei pra não errar o caminho até você
Mas aquele amor me fez enxergar,
que não há código, nem cálculo, o amor não tem segredo ...
no amor eu tive meu aprendizado,
Que no meu sentimento verdadeiro e na minha chance desperdiçada ,
poderia ter você ao meu lado.

Hoje? Te tenho num álbum de fotos
você estarás sempre nos meus pensamentos,
enquanto pelo menos existir essa memória velha
que gravou em segredo todos esses momentos.
Junior Fernandes 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A críica de Karl Popper ao Positivismo Lógico (Círculo de Viena)





Por (Anderson Yankee)

Karl Popper, mais preocupado com a lógica do conhecimento critica em vários aspectos os Positivistas lógicos, principalmente no que diz respeito ao método indutivo. Popper, com o pé em Hume, mostra que não é seguro o método dos positivistas, pois a indução tem suas limitações. Ora, este método se baseia na observação e abstrai a constância dos fatos, mas nada garante que um fato “X” se repita sempre, não importando quantas vezes este seja verificado. Pois nada impede que um dia haja uma exceção com o fato “X”, ou seja, que este fenômeno se mostre de outra forma diversa. Isto vale também para os experimentos, mesmo que testemos uma teoria “n” vezes, nunca teremos condições de afirmar a sua verdade com precisão absoluta. Com isto ele questiona se pode haver verdade ou validade nos enunciados baseados no princípio de indução.
Questionando o método, Popper não pode fugir do problema da demarcação. Ora, se ele afirma que o método é falho, acaba que o princípio de demarcação das ciências também apresenta falhas. A busca deste método, seja para os positivistas, seja para Popper é Aldo de extrema importância, pois é ele quem vai garantir credibilidade para as teorias.
A principal falha do princípio de demarcação dos positivistas provém do fato de que ele não dá conta da tarefa a que é destinado, ou seja, separar as ciências empíricas da Metafísica. Talvez por que, como diz Popper, os positivistas estavam tão preocupados em arruinar a Metafísica lhe atribuindo comentários pejorativos, no que diz respeito às suas criações, que não se deram conta de que acabaram não por arruiná-la, mas de certo modo, colocar as criações Metafísicas no mesmo patamar que a das ciências empíricas, isto é, igualando o caráter dos enunciados universais ao dos sistemas metafísicos. Vejamos: No método indutivo, generalizam-se os casos singulares transformando-os em universais. Para os enunciados singulares serem legítimos têm que derivar da experiência, ou seja, serem redutíveis a dados simples da percepção. Ademais, as leis da Metafísica seriam carentes de sentido por não possuírem a propriedade de ser como as ciências empíricas neste sentido, inclusive por não possuírem o mesmo método de se chegar à conclusão de algo. Com isso eles acabam aniquilando junto com a Metafísica as leis naturais, pois elas seriam carentes de sentido, ou seja, não são enunciados genuínos. Mas, ainda com isso eles ainda se colocam no mesmo patamar que estas que eles criticam, além de não demarcarem os limites da ciência. Pois do mesmo modo que as leis naturais, os enunciados científicos não se podem reduzir logicamente a enunciados elementares; aqueles que apresentam sentido.
Para resolver este problema, Popper vai propor um novo método para as ciências empíricas e, assim, um novo critério de demarcação para identificar se uma teoria é de caráter científico. Para tal tarefa ele não tem a mesma pretensão dos positivistas no que diz respeito a aniquilar a Metafísica, inclusive tratando-a de maneira pejorativa. E sim, apenas buscar uma justificação lógica dos enunciados universais acerca da realidade, mas despendido da indução.
O método de Popper segue o caminho contrário dos indutivistas. Consiste em primeiramente formar uma hipótese baseada na intuição e submetê-la a testes para comprovar então verificar a sua consistência, ou seja, se ela realmente é válida. Em outras palavras, Popper pretende que primeiramente se proponha as teorias e em seguida teste-as, que faça-se o exame da lógica da hipótese. Como já foi dito, a hipótese parte de uma “intuição criadora”. Para o exame, Popper propõe que a teoria pode ser testada de várias formas: Entre si, tendo em vista examinar a lógica interna da teoria; Comparando-a com outras teorias, buscando determinar qual funciona melhor e representa um avanço na ciência; Além de testá-la para determinar o caráter da teoria, além de constatar a sua utilidade prática. Quando uma teoria sobrevive aos testes a que foi submetida pode-se dizer que ela passou desta vez. Isto é, se ela é verificada será aceita enquanto funcionar e enquanto outra teoria não lhe sobrepujar. À teoria que passa nos testes é atribuído o termo “corroborada” – isto nada nos garante acerca do futuro de tal teoria.
É mister saber que o método de Popper não pretende afirmar a verdade acerca das teorias, mas sim que ela funciona, ou que foi aceita, corroborada temporariamente. As teorias têm o caráter provisório.
Deste modo, vemos que apesar de o método que Popper propõe ser distinto do método dos positivistas, a concepção científica do mundo de ambos é a mesma. Consideram que a ciência empírica deve representar o mundo real, ou seja, o mundo da experiência. Ademais, o sistema das ciências empíricas deve ser sintético, satisfazer ao critério de demarcação e ser o melhor possível carregando a marca de ser diferente dos outros sistemas que representam o mundo – isto implica que ele passou por testes e sobrepujou os outros sistemas. Então, ambos enxergam nas ciências empíricas uma lógica e um método que a distingue das outras ciências, a experiência.
Entretanto, Popper se distancia mais dos Positivistas – apesar de algumas de suas concepções ainda serem de caráter positivista, como defender o progresso da ciência – quando se trata do critério de demarcação dos limites das ciências empíricas. Popper propõe um método que procura não cair no erro dos positivistas de tentar separar as criações Metafísicas e as leis naturais das criações das ciências empíricas e acabar aniquilando as possibilidades de existência de leis naturais, da Metafísica e por cima prejudicar a própria ciência ao tornar.
Como já foi supracitado, para os positivistas o significado de um enunciado se dá pela possibilidade de ele ser verificado na experiência. Quando verificado, o enunciado pode ser tido como falso ou verdadeiro (falseado ou verificado). Assim eles estabelecem uma simetria entre a verificabilidade e a falseabilidade. Mas é sabido que as teorias não podem ser verificadas empiricamente. É justamente este problema que Popper pretende resolver. Ora, a ciência necessita de teorias, e mais que isto, de teorias justificadas, plausíveis. Popper propõe um critério de demarcação, um princípio que aceite as teorias, que aceite os enunciados não verificáveis.
Deve-se considerar primeiramente o que é um enunciado/sistema empírico para Popper; Em primeiro lugar, ele deve ser passível de teste; deve ser possível que se o refute pela experiência; que possa ser selecionado por meio de testes empíricos. O critério que ele propõe que dê conta de estar de acordo com o que é um sistema empírico e que dê conta de aceitar as teorias é o da falseabilidade, diferentemente do critério dos positivistas que é o da verificabilidade. Este método parte de uma via negativa para selecionar os sistemas e enquadrá-los como empíricos ou não; é empírico aquele que pode ser refutado pela experiência. Procura-se não concluir indutivamente uma teoria de enunciados singulares, mas sim contradizer o sistema dedutivamente usando os enunciados singulares; pois estes podem falsear o sistema, mas não nos levar a inferências que os caracterizem como universais, bem como Hume já tinha dito. Em suma, busca-se “provar a partir da verdade dos enunciados singulares a falsidade dos enunciados universais”.
Aqui se verifica uma assimetria entre verificabilidade e falseabilidade que resulta da forma lógica dos enunciados universais, os quais apesar de não poderem ser derivados dos singulares, podem ser refutados por estes. O que é de suma importância para que se possam considerar válidos até os enunciados que não possam ser verificados, como as teorias que pela simetria entre verificabilidade e falseabilidade eram consideradas sem sentido. Além disso, isto possibilita a existência das leis naturais.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Santo Agostinho e Sua Reflexão Sobre o Tempo

Por Ranis Fonseca de Oliveira

O tempo é, e sempre tem sido, um problema filosófico de grande interesse, principalmente em nossa época. Aliás, não só para filósofos e cientistas, mas também para o indivíduo comum, que está acostumado a organizar e realizar suas tarefas e experiências de acordo com a idéia de tempo concebida como sucessão de instantes traduzida em presente, passado e futuro. Agostinho de Hipona (354-430) foi um dos grandes pensadores a se preocupar com esta problemática.
A reflexão filosófica agostiniana sobre o tempo encontra-se no Livro XI da obra Confissões, texto belíssimo, autobiográfico, redigido entre os anos de 397 e 398, em que Agostinho revela-se admirável analista de problemas psicológicos íntimos, tanto quanto de questões puramente filosóficas.
São perceptíveis três sentidos da palavra confissão no texto agostiniano: confissão de fé, confissão de pecado e de louvor a Deus. Nessa narrativa, o interlocutor privilegiado é o próprio Deus, ou seja, o Tu Divino. É este Tu que vai garantir a veracidade do relato de Agostinho, como ele próprio descreve: “Ó senhor meu – a quem a minha consciência cotidianamente se confessa, mais confiada na esperança da vossa misericórdia do que em sua inocência –, mostra-me, eu Vo-lo peço, que proveito, sim, que proveito haverá em confessar, neste livro, também aos homens, diante de Vós, não quem fui, mas quem sou? Já vi e recordei o fruto que daí se tira. Há muitos, porém, que desejam saber quem eu sou no momento atual em que escrevo as Confissões. Desses, uns conhecem-me, outros não; ou, simplesmente ouviram de mim ou de outros, a meu respeito, alguma coisa. Mas os seus ouvidos não me auscultam o coração, onde eu sou o que sou. Querem, pois, ouvir-me confessar quem sou no interior, para onde não podem lançar o olhar, o ouvido ou a mente. Querem-no, contudo, dispostos a acreditar. Poder-me-ão conhecer? A caridade, porém, que os torna justos, diz-lhes que eu, ao confessar-me, não minto. É ela quem os faz acreditar em mim.”
Seu discurso autobiográfico passa sempre pela certeza do Tu me conheces. Uma passagem obrigatória do eu agostiniano por Deus, para depois voltar a si mesmo. Deste modo, em suas confissões, Agostinho não pode enganar seus leitores, já que também não pode enganar a Deus.
O Que é o tempo?
A reflexão filosófica de Agostinho sobre o tempo é uma de suas mais brilhantes análises filosóficas, a qual o torna, embora sendo um pensador medieval, muito mais contemporâneo do que muitos outros da atualidade. O modo como Agostinho expõe suas interrogações com relação ao tempo marca a reflexão ocidental até os dias de hoje.
Questiona Agostinho: “Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”
Agostinho defronta-se com algumas dificuldades principais ao falar sobre o tempo: não podemos apreendê-lo, pois o tempo nos escapa, não conseguimos medi-lo. E também não podemos percebê-lo.
A nossa percepção do tempo permite dividi-lo em três partes: passado, presente e futuro. A partir de nossa experiência, sabemos que esses três tempos são bastante distintos entre si. O passado é o tempo que se afasta de nós, de nossa consciência, de nossa percepção; é tudo que já não é mais palpável, simplesmente porque já se foi. Chamamos de presente o “agora”, o tempo em que nossas experiências acontecem, no momento em que ocorrem. E o futuro, por sua vez, corresponde ao conjunto de todos os eventos que se concretizam na medida em que o tempo passa. Em outras palavras, o futuro é como o lugar onde estão prontos todos os fatos que presenciamos quando determinado período de tempo vier a transcorrer, por menos ou por mais extenso que seja.
De acordo com nossa percepção, dividimos o tempo em três partes distintas: o presente, o passado e o futuro. Seria necessário, neste momento, lançar mão à seguinte questão levantada por Agostinho: É possível medir o tempo? “E, contudo, Senhor, percebemos os intervalos dos tempos, comparamo-los entre si e dizemos uns são mais longos e outros mais breves. Medimos também quando esse tempo é mais comprido ou mais curto do que o outro, e respondemos também que um é duplo ou triplo, ou que a relação entre eles é simples, ou que este é tão grande como aqueles. as não medimos os tempos que passam, quando os medimos pela sensibilidade. Quem pode medir os tempos passados que já não existem ou os futuros que ainda não chegaram? Só se alguém se atrever a dizer que pode medir o que não existe! Quando está decorrendo o tempo, pode percebê-lo e medi-lo. Quando, porém, já tiver decorrido, não o pode perceber nem medir, porque esse tempo já não existe”
Desta forma, não conseguimos medir o tempo. O presente porque não tem nenhum espaço; o futuro porque ainda não veio e o passado porque já não existe mais. Podemos perceber e medi-lo apenas no momento em que está decorrendo.
Tempo e Memória
A reflexão sobre a memória é um elemento importantíssimo na filosofia agostiniana, principalmente para falar do tempo. Ao falar da memória, Agostinho sempre usa as metáforas do lugar e do espaço como, por exemplo, “campos e vastos palácios”, “santuários infinitamente amplos”. Usa um vocabulário de beleza esplêndida, porém, não é o suficiente para dizer o que é a memória (a análise sobre a memória encontra-se no Livro X das Confissões).
O mesmo acontece com o tempo, pois, como diz Jeanne Marie, professora do Departamento de Filosofia da PUC-SP: “é a nossa propensão, quase natural, de falar e de pensar no tempo em termos (em imagens, em conceitos) espaciais que nos impede de entender sua verdadeira natureza”4. A linguagem não é suficiente para dizer a memória, tanto quanto não é suficiente para dizer o tempo. Ou seja, não conseguimos ir além ao que diz respeito à memória e ao tempo por sermos impedidos pelas categorias espaciais que fazemos uso.
Agostinho entende que existe outra maneira de pensar o tempo sem ser em termos espaciais, mas a partir de outro elemento, que é a linguagem, a fala. E por este motivo ainda continuamos pensando o tempo, mas sem a tentativa de explicar a sua essência. Podemos tentar apreendê-lo a partir de nossas práticas lingüísticas, porque a linguagem adquire sentido a partir do tempo. Em outras palavras, não se pode pensar um sem o outro, pois a linguagem articula o tempo, assim como o tempo articula a própria linguagem. “Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação de pensar na linguagem que o diz e que nele se diz”.
Neste sentido, percebe-se que memória e linguagem são de suma importância para Agostinho em sua tentativa de dizer o tempo, que ele pensa não só em termos cosmológicos, como medida de movimento, mas também como interioridade psíquica, “abrindo um novo campo de reflexão: o da temporalidade, da nossa condição específica de seres que não só nascem e morrem ‘no’ tempo, mas, sobretudo, que sabem, que têm consciência dessa sua condição temporal e mortal”.
Em Agostinho, a alma é a sede das capacidades humanas de compreensão, percepção, raciocínio, sentimento, em suma, de todas as potencialidades do espírito. Da mesma forma, o filósofo afirmou que a sede do tempo está na alma. Para entender isso é preciso ter em mente a idéia de que o tempo faz parte da criação: o tempo é criatura. Fora da criação existe somente a eternidade de Deus, que consiste na imutabilidade, na ausência de tempo. A eternidade, assim, não é tempo infinitamente prolongado, mas uma existência sem nenhum limite, ao contrário de, por exemplo, a existência humana que é uma distensão, cujas fronteiras são o nascimento e a morte. “É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.”
A Alma
Os tempos, como afirma Santo Agostinho, existem na mente – o que em sua reflexão equivale a dizer na alma. O passado não existe mais, só é possível na alma do ser humano, por meio da memória. É essa potencialidade humana que permite que as coisas passadas venham novamente à nossa presença. Apenas a recordação, portanto, é que torna possível falarmos em tempo passado. O presente, por sua vez, é o conjunto de nossas sensações e pensamentos do momento, aquilo que percebemos diante de nós e o que estamos cogitando; é a percepção e a consciência. Finalmente, o futuro é a resposta: nossas previsões, nossas esperanças.
Os termos lembrança ou recordação, percepção ou atenção e espera são muito bem traduzidos na seguinte fala de Agostinho: “Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que começar a minha memória dilata-se, colhendo tudo que passa de expectação para o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim tanto mais a memória se alonga e a expectação se abrevia, esta que fica totalmente consumida, quando a ação, já toda acabada, passa inteiramente para o domínio da memória.”
Construção do “EU”
Desse modo, Agostinho, em todo momento, antes de falar do tempo remete primeiramente à memória. É como se a memória fosse um recurso que interiorizasse a temporalidade, os rastros de algo que já não existe mais, mas que está presente. Se o passado já se foi, o seu vestígio permanece atual na memória. O rastro é algo que existe em ausência do outro, “é presença de uma ausência”, como diz Derrida. Não há presença plena, nem uma ausência total. A imagem, vestígio, permanece gravada mesmo depois que algo já passou. Por isso Agostinho precisou da memória para falar do tempo.
A questão do tempo ainda permanece obscura e controversa. Muitos autores que pensam sobre o tempo, pensam a partir de Santo Agostinho. Como é o caso de Paul Ricoeur, em Tempo e narrativa, que logo no início de seu texto diz: “A antítese principal em torno da qual nossa própria reflexão vai girar encontra sua expressão mais aguda lá no fim do Livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Dois traços da alma humana se acham aí confrontados, os quais o autor com seu gosto marcante pelas antíteses sonoras dá o nome de intentio e de distentio anumi”.
A análise agostiniana sobre o tempo, que não é realizada apenas em termos cosmológicos, como medida de movimento, mas também como inseparável da interioridade psíquica, é um elemento importante para a constituição do eu ou do sujeito, pois o eu agostiniano que começa a narrativa das confissões não é o mesmo que conclui. O tempo é a produção da identidade e da diferença consigo mesmo, pode ser ainda a dimensão de um sujeito que está se constituindo, pois ele exerce um papel fundamental na consciência humana, uma vez que tempo e consciência são indissociáveis.
Agostinho em seu estilo de fazer Filosofia, de discutir questões, como o tempo, tão importantes para a cultura ocidental, tornou-se um pensador que vale a pena ser lido e discutido em muitas esferas do conhecimento. Neste sentido, concluímos com Jeanne Marie Gagnebin: “Permanece a seguinte questão: hoje, quando não podemos mais acreditar com a mesma certeza tranqüila que o Outro de nosso tempo, seja a eternidade divina, como conseguir, porém, uma compreensão diferenciada, inventiva da temporalidade – e da história! – humana em suas diversas intensidades? Questão essencial, à qual o pensamento teológico de Agostinho responde e à qual, em sua profundidade radical, a reflexão contemporânea, seja ela histórica, poética, ou filosófica, não pode se furtar.”
*Ranis Fonseca de Oliveira é Mestre em Filosofia pela PUC/SP

domingo, 15 de setembro de 2013

Vida e Filosofia de Martim Heidegger



Introdução. Filósofo alemão que escreveu sua filosofia em linguagem altamente cifrada e, apesar de que o dizem dificilmente compreensível, é romanticamente cultuado por um grande número de admiradores de fragmentos poéticos do seu pensamento sobre o Ser. No entanto, ele próprio desistiu de suas idéias, preferindo não publicar o segundo volume de sua obra principal, "O Ser e o Tempo". Fervoroso adepto do nazismo antes da derrota da Alemanha na segunda guerra mundial, para muitos foi um pensador original, um crítico da sociedade tecnológica do século XX. De sua obra ficou a designação de "Existencialismo" para a corrente de pensamento anti-determinista fundada por Kierkegaard, à qual se filiou. Foi um escritor prolixo: calcula-se que reunir tudo que escreveu daria uns 70 volumes

Primeiros anos e juventude. Martin Heidegger nasceu a 26 de setembro de 1889 em Messkirch, na Schwarzwald (Floresta Negra), Alemanha, e faleceu em 26 de maio de 1976, na mesma Messkirch, então parte da Alemanha Ocidental. Seu pai foi um sacristão católico, incumbido das vestes e dos objetos sagrados, de tocar os sinos e também de cavar as sepulturas no interior do templo. Heidegger mostrou uma preocupação religiosa precoce e teve seu interesse despertado para a filosofia ainda ao tempo de seus estudos básicos, através da leitura do filósofo católico do final do século XIX Franz Brentano. Impressionou-o a psicologia "descritiva ", como é apresentada no Von der mannigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles ("Dos vários significados do Ser de acordo com Aristóteles"-1862) de Brentano. De seu estudo inicial de Brentano procede também seu entusiasmo pelos gregos, especialmente os pre-Socraticos. Após terminar os estudos básicos, Heidegger entrou para a ordem dos Jesuítas. Como noviço, estudou a Escolástica (filosofia cristã medieval) e a teologia tomista, na universidade de Freiburg.

Por toda sua vida madura Heidegger esteve obcecado pela possibilidade de haver um sentido básico do verbo "ser" que estaria por trás de sua variedade de usos. As suas concepções quanto ao que existe, são uma Ontologia (o estudo do que é, do que existe: a questão do Ser) dependente dos filósofos antes de Sócrates, da filosofia de Platão e de Aristóteles, e dos Gnósticos. Foi influenciado ainda por diversos filósofos do século XIX e do início do século XX, principalmente pelo pensador cristão dinamarquês Søren Kierkegaard , pelos filósofos alemães Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Wilhelm Dilthey (1833-1911), e pelo seu mestre e fundador da fenomenologia (o estudo do modo como as coisas se manifestam), Edmond Husserl (1859-1938).

Quando ainda em seus 20 anos, Heidegger estudou em Freiburg com o filósofo Heinrich Rickert (1863-1936), mais tarde fundador da escola de Baden do pensamento neo-kantiano, e com Husserl, que era então já famoso. A fenomenologia de Husserl, e especialmente sua luta contra a inclusão da psicologia nos estudos essenciais do homem – que ele sentiu que deviam ser conduzidos, em vez, no nível filosófico – determinou o substrato da dissertação doutoral do jovem Heidegger (1914). Consequentemente, o que Heidegger mais tarde disse e escreveu sobre a ansiedade, pensamento, perdão, curiosidade, angústia, cuidado, ou medo com certeza não se referia à psicologia; e o que ele disse sobre o homem, não pretendeu que fosse sociologia, antropologia, ou ciência política. Suas proposições objetivavam descobrir maneiras de ser.

Maturidade. Heidegger começou a lecionar na universidade de Freiburg durante o semestre acadêmico do inverno de 1915 e ganhou sua habilitação com um estudo do filósofo franciscano escocês falecido na Alemanha John Duns Scotus (1266-1308). Moço ainda e agora um colega de Husserl, era de esperar que levasse o movimento fenomenológico mais longe dentro do espírito de seu antigo mestre. Entretanto, de grande vocação religiosa, ele preferiu seu próprio caminho, e em 1927 surpreendeu o mundo filosófico alemão com Sein und Zeit ("O ser e o tempo", 1962) – um trabalho que, embora quase impossível de se ler, foi imediatamente considerado da maior importância. O livro foi aclamado como um trabalho profundo e importante não somente em países de língua germânica mas também nos países latinos, onde a fenomenologia era já bem conhecida mas a língua alemã nem tanto.

Heidegger influenciou fortemente Jean-Paul Sartre, na França, e outros existencialistas e, apesar dos protestos de fé do próprio Heidegger, ele foi considerado, por força deste livro, como um líder do existencialismo ateu. Entretanto, entre os intelectuais ingleses, mais avessos aos modismos do Continente, sua recepção foi um tanto fria, e sua influência foi insignificante por várias décadas.

Em "O ser e o tempo", o propósito declarado de Heidegger é trazer à luz o que significa ser para o homem, ou "como é ser". Pode se dizer que o aspecto messiânico da sua filosofia está em levar cada homem a fazer essa pergunta com o máximo envolvimento. Na crise atual da humanidade, já seria bastante que o homem se detivesse nesta reflexão; e se ele eventualmente chegará ou não a qualquer resposta definitiva, torna-se de importância secundária. Sem esta reflexão, o homem segue uma maneira não autêntica de ser, em uma alienação que o desenvolvimento tecnológico agrava cada vez mais.

Na ocasião da publicação de "O ser e o tempo", Heidegger era professor "ordinarius" em Marburg onde lecionou por diversos anos (desde 1923). Renunciou a esse lugar e, em 1928, retornou a Freiburg, desta vez como o sucessor de Husserl. Seu discurso de posse na cátedra foi Was ist Metaphysik?("Que é Metafísica?"-1929) no qual elabora um de seus temas favoritos, das Nichts; isto é, "o Nada".

Adesão ao Nazismo. No início dos anos 30 ocorreu uma reviravolta no pensamento de Heidegger, um giro afastando-o do problema do ser e do tempo. Isto foi negado por ele, que insistiu que toda a vida, desde sua juventude, estivera fazendo aquela mesma pergunta fundamental, mas em seus últimos anos tornou-se claramente mais relutante em voltar ao assunto, e a oferecer qualquer resposta ao problema básico do ser e do tempo.

Aproximadamente na época dessa reviravolta ocorreu também sua adesão ao nazismo, curta devido certamente apenas ao desenlace desfavorável da guerra, mas nem por isso uma participação menos eloqüente. Seu envolvimento com a política cultural do terceiro reich teve início mesmo antes de Adolf Hitler assumir o poder em novembro de 1933. Com o crescimento do Partido e sua penetração nos meios intelectuais, as universidades alemãs foram expostas a pesadas pressões. Esperava-se que apoiassem a "revolução nacional" e eliminassem os intelectuais judeus e suas doutrinas (tais como a da relatividade). O reitor em Freiburg, um cientista anti-nazista, renunciou como protesto, e a equipe de professores elegeu unanimemente o engajado Heidegger como seu sucessor.

Como Heidegger aprendeu com Husserl, é o método fenomenológico e não o método científico que revela os modos de ser do homem. Assim, ao seguir este método, Heidegger cai em conflito com a dicotomia da relação sujeito-objeto, que implicou tradicionalmente que o homem, como cognescente, é algo (alguma coisa) dentro de um ambiente que ele confronta. Esta relação, entretanto, deve ser transposta porque,. ao contrário, o Saber mais profundo é matéria do phainesthai (grego: "mostrar-se" ou "estar na luz"), a palavra da qual "phenomenologia", como um método, é derivada. Algo está exatamente "lá" na luz. Assim, a distinção entre o sujeito e o objeto não é imediata mas vem somente mais tarde com a conceitualização, como nas ciências.

O discurso de posse de Heidegger na reitoria ("A auto-afirmação da universidade alemã") foi uma ampla afirmação de Nazismo. Para garantir, ele dividiu as tarefas dos estudantes em serviço do trabalho, serviço militar, e serviço científico. Porém, para seus admiradores, ansiosos por livrá-lo tanto quanto possível de compromissos com a ideologia nazista, Heidegger estava apenas copiando a política educacional autoritária de Platão, e afinal, alegam, o discurso sequer terminou com um "Heil, Hitler!", mas com uma citação da república de Platão: "todas as grandes coisas se expõem ao perigo".

No entanto, em seu discurso Heidegger não mostra adesão última à filosofia nazista. No texto ele incita à pergunta "o que é ser?", coloca sua advertência contra perder-se alguém em "coisas" que o alienam do ser autêntico (Seiendes), e opõe-se à especialização científica. Porém, entrou para o partido nazista e apesar de renunciar à reitoria em 1934, em várias ocasiões pronunciou sólidos discursos pro-Hitler. "o Führer ele mesmo," disse Heidegger, "e somente ele é a realidade alemã, presente e futura, e sua lei". Não é de se esperar que o defensor da autenticidade não fosse ele mesmo autêntico, inclusive enquanto nazista.

A história do Nacional-Socialismo depois de 1934, e até o fim da II Guerra Mundial, pode ser dividida em duas partes com aproximadamente igual duração de seis anos. É importante – para compreender a adesão de muitas pessoas inteligentes e sensatas ao nazismo –, reconhecer que o primeiro período foi de promessas que pareciam de realização justa e eminente e, aparentemente, apenas o segundo foi marcado por inquestionáveis crimes cometidos pelo partido até a desilusão e a derrota final. Os anos entre 1934 e 1939, foram gastos pelo Partido em estabelecer o inteiro controle em todos os níveis da vida na Alemanha. Durante aqueles anos Hitler e seu movimento ganharam o apoio e mesmo o entusiasmo da maioria da população alemã. Muitos alemães haviam crescido conscientes dos conflitos políticos, da instabilidade econômica e política, e da desordem geral que caracterizou os últimos anos da República de Weimar. Eles saudaram com crescente esperança o forte, decisivo, e aparentemente competente governo implantado pelos nazistas. Após 1934 a interminável horda de ociosos na Alemanha rapidamente diminui na medida em que os desempregados eram colocados a trabalhar em projetos de obras públicas e nas fábricas de armamento que se multiplicavam rapidamente. Os alemães foram naturalmente arrastados para esse movimento de massas ordeiro, poderosamente objetivo, destinado a restaurar a dignidade, o orgulho e a grandeza do seu país, e devolver-lhe o primeiro lugar no palco europeu. A recuperação econômica dos efeitos da Grande Depressão e o forte nacionalismo alemão eram, assim, os fatores-chave no apelo do Nacional-Socialismo para a população alemã. Finalmente, os êxitos constantes de Hitler no campo diplomático e suas conquistas externas a partir de 1934 até os primeiros anos da II Guerra garantiu o apoio incondicional da maioria dos alemães, inclusive, muitos que haviam inicialmente se oposto a ele.

Últimos anos. Em novembro 1944 Heidegger parou de lecionar. A invasão da Alemanha derrotada pelas potências aliadas tornou difícil a situação dos nazistas mais destacados. Em 1945 ele foi proibido de lecionar oficialmente e suas atividades nazistas foram investigadas. Não foi incriminado em nenhum dos crimes praticados pelos partidários de Hitler e por isso não perdeu seus direitos a uma aposentadoria. Deu regularmente influentes conferências nos anos 1951-58, e continuou um intelectual importante dentro do movimento fenomenológico internacional até seu falecimento em 1976.



FILOSOFIA

O conhecimento. Tradicionalmente, o conhecimento implicava a dicotomia da relação sujeito-objeto, em que o homem, como cognoscente, é algo dentro de um ambiente que ele confronta (separadamente um conceito de sujeito e um conceito de objeto). Para Heidegger, esta relação deve ser transposta. O Saber mais profundo, ao contrário, é matéria do phainesthai (grego: "mostrar-se" ou "estar na luz"), a palavra da qual fenomenologia, como um método, é derivada. Algo está exatamente "lá" na luz. Assim, neste conhecimento profundo, a distinção entre o sujeito e o objeto não é imediata mas vem somente depois com a conceitualização, como nas ciências . Então o homem existe segundo certos fenômenos, que são os modos como ele está lá, na luz (Dasein, "o ser" em alemão é, etimologicamente, a palavra da, que significa "lá" com a palavra sein, que significa "estar")

Terminologia. Heidegger evita termos das ciências sociais ou da psicologia tanto quanto possível, em favor de uma terminologia ontológica. Viu-se então na necessidade de criar uma terminologia nova, palavras novas para exprimir seu pensamento. Foi criticado por desenvolver seu próprio alemão, seu próprio grego, e seu próprio tipo de etimologias. Inventa, por exemplo, aproximadamente 100 palavras complexas novas que terminam com "- sendo." Ao ler seus trabalhos se deve, assim, traduzir muitos de seus termos chaves de volta em palavras gregas a fim de entender suas interpretações e etimologias. Isto faz um risco que, ao "interpretar" a filosofia de Heidegger, alguém esteja na verdade, criando, pelo menos em parte, sua própria "filosofia de Heidegger"

Os existenciais. Heidegger divide a existência em três "estruturas existenciais": afetividade, fala e entendimento. São três fenômenos existenciais que caracterizam como as coisas do passado, do presente e do futuro se manifestem para o homem e a unidade desses três fenômenos constitui a estrutura temporal que faz a existência inteligível, compreensível..

1) a afetividade: as coisas do passado chegam ao homem como valores, afetando-lhe os sentimentos, que podem ser públicos, compartilhados, e transmissíveis.

2) a fala: no presente, as coisas se traduzem em palavras da linguagem na articulação dos seus significados

3) o entendimento: as coisas do futuro, onde o projeto que define o homem encontrará a morte, são as coisas não garantidas, que lhe são devolvidas para gerar nele o sentimento de que não está em casa neste mundo, mesmo estando entre as coisas que lhe são mais familiares.

Portanto, no homem, o ser está relacionado ao tempo e está dado, - existe -, nestes três fenômenos, nestes três "existenciais".

A alienação. O homem está fora das coisas, diz Heidegger em "O ser e o tempo", nunca sendo completamente absorvido por elas, mas não obstante, não sendo nada, à parte delas. O homem vive, até o fim, em um mundo no qual ele foi jogado. Sendo algo jogado em meio às coisas, estando-lá (Da-sein), constitui algo à parte (Verfall) mas está no ponto de ser submergido nas coisas. É continuamente um projeto (ent-wurf); mas ocasionalmente, ou mesmo normalmente, pode ser submergido nas coisas a tal ponto que é absorvido nelas temporariamente (Aufgehen in). O homem encobre aqueles condicionantes existenciais, - aquilo que ele de fato é -, entregando-se a uma rotina de superficialidades "públicas" na vida cotidiana. Não é então ninguém em particular; e uma estrutura que Heidegger chama das Man ("o eles ") é revelada, como uma tendência da alienação de si mesmo que leva o homem à tendência de se conhecer apenas através da comparação que faz de si mesmo com os outros indivíduos seus pares.

A característica do das Man é a conversa inócua (Gerede) e curiosidade (Neugier). No Gerede, o que fala e o ouvinte não estão em nenhuma relação pessoal genuína ou em qualquer relação intima com aquilo sobre o que falam, o que, portanto, conduz à superficialidade. A curiosidade é uma forma de distração, uma necessidade para o "novo," uma necessidade para algo "diferente," sem interesse ou capacidade de maravilhar.

A angústia. Mas uma coisa pode acontecer que desperta o homem dessa alienação, a angústia (Angst). Ela resulta da falta de base da existência humana. A "existência" é uma suspensão temporária entre o nascimento e a morte O projeto de vida do homem tem origem no seu passado (em suas experiências) e continuam para o futuro, o qual o homem não pode controlar e onde esse projeto será sempre incompleto, limitado pela morte que não pode evitar.

A angústia funciona para revelar o ser autêntico, e a liberdade (Frei-sein) como uma potencialidade. Ela enseja o homem a escolher a si mesmo e governar a si mesmo.

Na angústia, a relevância do tempo, da finitude da existência humana, é experimentada então como uma liberdade para encontrar-se com sua própria morte (das Freisein für den Tod), um "estar preparado para" e um contínuo "estar relacionado com" sua própria morte (Sein zum Tode). Na angústia, todas as coisas, todas as entidades (Seiendes) em que o homem estava mergulhado se afastam, afundando em um "nada e em nenhum lugar," e o homem então em meio às coisas paira isolado, e em nenhuma parte se acha em casa (Un-heimlichkeit, Un-zu-hause). Enfrenta o vazio, a "nenhuma-coisidade" (das Nichts); e toda a "rotinidade" desaparece– e isto, para Heidegger, é bom, uma vez que ele então encontra a potencialidade de ser de modo autêntico.

Assim, a angustia "sóbria" (nüchtern) e a confrontação implicada com a morte são primeiramente ferramentas, têm importância metodológica: certos fundamentos são revelados. A ansiedade abre o homem para o ser.

Entre as estruturas reveladas estão as potencialidades do homem para ser alegremente ativo ("conhecer a alegria [die wissende Heiterkeit] é uma porta para o eterno"). Isto não quer dizer que o ser participa do lado negro do desespero, da angústia; o ser é associado com a " luz " e com " a alegria " (das Heitere). Pensar o ser é chegar ao verdadeiro lar.

Por isso, dos três existenciais, Heidegger privilegia o futuro, porque esta projeção para o advir e o golpe da devolução no embate com a morte que lá está é que o leva a pensar e à autoconscientização.

O homem pode então introduzir esse conhecimento existencial no projeto de sua vida, e assim se apropriar da existência fazendo-a efetivamente sua, tornando-se autêntico, não mais um ente sem raízes.

Essa visão existencial do homem, em que ele se conscientiza das estruturas existenciais a que está condicionado e que o tira da superficialidade em que desenvolve seus conflitos tornou-se sedutora para a psiquiatria, surgindo ai proeminentes terapeutas existencialistas como Binswanger, Boss e Ronald Laing.

Rubem Queiroz Cobra 
Doutor em Geologia e bacharel em Filosofia

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

SOBRE A ORIGEM FUNDAMENTAL DAS COISAS - Leibniz




Gottfried Wilhelm Leibniz
( 23.nov.1697)


Além do mundo, isto é, além do agregado das coisas finitas, existe alguma Unidade dominante que o rege e que está para aquele mundo não só como a alma para mim mesmo, ou melhor, como eu para o meu corpo, mas também em um sentido mais elevado.² Pois a Unidade que domina o universo não apenas rege o mundo, mas também o constrói ou faz; ela é superior ao mundo e, por assim dizer, extramundana. Por conseguinte, ela é a razão fundamental das coisas. Com efeito, não podemos achar em qualquer das coisas singulares, ou mesmo em agregados completos e nas séries de coisas, uma razão suficiente pela qual existam. Suponhamos que um livro sobre os elementos de geometria tenha perpetuamente existido, uma cópia sendo feita de uma outra. É óbvio que, embora possamos explicar uma presente cópia como sendo uma reprodução de um livro anterior, do qual foi copiado, isso nunca nos levará a uma razão completa (para a existência de tal livro), não importando quantos livros consideremos, visto que sempre teremos curiosidade de saber o porquê da existência perpétua de tais livros, o porquê de tais livros terem sido escritos e por que o foram desta forma e não de outra. O que é verdadeiro para esses livros também o é para os diferentes estados do mundo, pois o estado que segue é, de certo modo, copiado do estado precedente, embora em conformidade com certas leis de mudança. E assim, por mais que possamos retroceder aos estados anteriores, jamais encontraremos nesses estados uma razão (ratio) completa para o porquê de existir qualquer mundo e por que ele é do modo que é. ³

Eu certamente admito que tu possas imaginar que o mundo é eterno. Todavia, desde que assumas nada além de uma sucessão de estados e desde que nenhuma razão suficiente para o mundo pode ser encontrada em qualquer um deles (de fato, assumindo tantos quantos queiras não encontrarás de modo algum a razão), é evidente que esta deve ser encontrada em outra parte. Pois nas coisas eternas, mesmo se não há causa, devemos mesmo assim conceber uma razão que nas coisas imutáveis é a própria necessidade ou essência em si, enquanto que nas coisas mutáveis (se, a priori, nós imaginássemos que são eternas), a razão seria a força superior de certas inclinações, como veremos em breve, onde as razões não se tornam necessárias (no sentido de uma necessidade absoluta ou metafísica, onde o contrário implica uma contradição), mas inclinam. Disto se conclui que mesmo se assumirmos a eternidade do mundo, nós não podemos evitar a necessidade de admitir a razão fundamental e extramundana das coisas, que é Deus.4

Portanto, as razões para o mundo encontram-se ocultas em algo extramundano, distinto da sucessão de estados ou da série de coisas cujo agregado constitui o mundo. E assim, nós devemos passar da necessidade física ou hipotética, que determina as coisas posteriores do mundo pelas anteriores, para alguma coisa que seja de necessidade absoluta ou metafísica, algo para o qual a razão não pode ser dada. Pois o mundo presente é física ou hipoteticamente necessário, mas não absoluta ou metafisicamente. Isto é, dado que ele foi uma vez tal e qual, segue-se que as coisas no futuro manifestar-se-ão do mesmo modo. Portanto, desde que a raiz fundamental deve estar em algo que é de necessidade metafísica e desde que a razão para algo existente deve vir de algo que realmente existe, segue-se que deve existir um Ser único de necessidade metafísica, isto é, deve existir um ser cuja essência é a existência, e, portanto, deve existir algo diverso da pluralidade das coisas, que difere do mundo, que admitimos e demonstramos não ser de necessidade metafísica.5

Além disso, para explicarmos um pouco mais distintamente como verdades temporais, contingentes ou físicas originam-se das verdades eternas, essenciais ou metafísicas6 devemos primeiro admitir que desde que algo existe, em vez de nada, há uma certa exigência de existência ou, por assim dizer, uma pretensão à existência nas coisas possíveis ou na possibilidade ou essência nela mesma; em uma palavra, que a essência tende por si mesma à existência. 7 Donde segue-se daí que todos os possíveis, isto é, todas as coisas que expressam essência ou realidade possível, tendem com igual direito a existência em proporção à quantidade de essência ou realidade ou grau de perfeição que elas contêm, pois a perfeição nada mais é do que a quantidade de essência.

Disto se compreende que das infinitas combinações de possibilidades e séries possíveis, aquela que existe é aquela através da qual o máximo de essência ou possibilidade é levado a existir. Sempre vigora nas coisas um princípio de orientação de acordo com que se deve buscar o máximo ou o mínimo; isto é, que se produza o máximo efeito com o mínimo de gasto, por assim dizer. E no caso atual, o tempo e o lugar ou, em uma palavra, a receptividade ou capacidade do mundo pode ser considerada como o custo ou como o terreno sobre o qual se construa o mais agradável dos edifícios e a variedade das formas do mundo correspondam à comodidade do edifício e ao número e refinamento dos quartos. E a situação é semelhante àquela de determinados jogos nos quais todas as posições sobre o tabuleiro devem ser preenchidas conforme certas regras e onde, no final, obstruídos certos espaços, tu serás forçado a deixar mais posições vazias do que poderias ou desejarias, a menos que utilizes de algum ardil. Há, contudo, um certo procedimento através do qual se pode mais facilmente preencher o tabuleiro. Assim da mesma maneira que, por exemplo, se supusermos que nos peçam para construir um triângulo, sem que nos seja dada qualquer orientação, haveremos de produzir um triângulo eqüilátero; ou se supusermos que vamos de um ponto a outro sem qualquer orientação prévia quanto à trajetória, acabaremos por escolher aquela mais fácil, isto é, a mais curta; da mesma forma, dizíamos, assumindo que em algum tempo o ser prevaleça sobre o não-ser; ou que haja uma razão pela qual alguma coisa exista em vez do nada; ou que se deva passar da possibilidade para o ato, embora sem nenhuma outra determinação, segue-se que existiria tanta possibilidade quanto poderia existir, dada a capacidade do tempo ou do espaço (isto é, da ordem possível das existências); em resumo, assemelha-se a azulejos assentados a fim de, em determinada área, conter o maior número possível deles. 8

Disto já podemos compreender maravilhosamente como uma espécie de Matemática Divina ou Mecanismo Metafísico é utilizada na criação das coisas e como a determinação de um máximo encontra lugar. O caso é semelhante àquele da geometria, onde o ângulo reto é eminentemente distinto de todos os demais ângulos; ou como o caso de um líquido colocado com outro de tipo diferente que toma, então, uma forma mais propícia a conter o máximo, ou seja, a da esfera; ou sobretudo, como o caso da mecânica comum onde da luta recíproca de muitos corpos pesados finalmente surge um movimento através do qual resulta, no total, a maior descida. Pois, exatamente como todos os possíveis tendem com igual direito para a existência em proporção às suas realidades, igualmente todos os corpos pesados tendem com igual direito a descer em proporção aos seus pesos; e tal como neste caso resulta um movimento que contém a maior descida de corpos pesados quanto possível, naquele outro dá origem a um mundo no qual o maior número de possíveis é produzido.

De fato, agora temos a necessidade física derivada da necessidade metafísica. Pois mesmo que o mundo não seja metafisicamente necessário, no sentido de que seu contrário implique contradição ou absurdidade lógica, ele é, todavia, fisicamente necessário ou determinado, no sentido de que seu contrário implica imperfeição ou absurdidade moral. E exatamente como a possibilidade é o princípio (principium) da essência, da mesma maneira a perfeição ou grau de essência (através do qual o maior número de coisas são compossíveis) é o princípio da existência. Daí está óbvio que o Autor do mundo é livre, ainda que tudo faça de modo determinado, já que Ele atua conforme um princípio de sabedoria ou perfeição. Na verdade, a indiferença provém da ignorância e o mais sábio é aquele que mais está determinado a fazer aquilo que é mais perfeito.

Mas, tu dizes, essa comparação entre um certo mecanismo de metafísica determinante e o mecanismo físico de corpos pesados, embora pareça elegante, é defeituosa na medida em que os corpos pesados, que tendem para baixo, realmente existem, enquanto as possibilidades ou essências, antes ou fora da existência são imaginárias ou ficcionais e, portanto, não se pode buscar nelas uma razão de existir. Eu respondo que nem essas essências nem as assim denominadas verdades eternas a elas pertinentes são fictícias. Pelo contrário, elas existem em um certo reino das idéias, por assim dizer, ou seja, no próprio Deus, a fonte de toda essência e da existência de todo o resto. A própria existência da atual série das coisas demonstra que, ao que parece, não falamos sem base. Desde que a razão para as coisas deve ser buscada nas necessidades metafísicas ou nas verdades eternas, já que (como mostrei acima) não pode ser encontrada na série de coisas; e já que as coisas existentes não podem derivar de nenhuma outra coisa exceto de coisas existentes, como acima observei, então, é necessário que as verdades eternas tenham suas existências em algum sujeito absoluta e metafisicamente necessário, isto é, em Deus, através de quem aquelas coisas, que de outra maneira seriam imaginárias, são realizadas (para utilizar uma expressão bárbara, porém representativa).

De fato, observamos que tudo no mundo acontece de acordo com leis das verdades eternas, leis que não são meramente geométricas, mas também metafísicas, isto é, não apenas em conformidade com necessidades materiais, mas também em conformidade com razões formais. Isto é verdade não somente em termos muito gerais, como na explicação (ratio) que acabei de dar sobre o porquê do mundo existir ao invés do nada e por que ele existe desse modo ao invés de qualquer outro (explicação que certamente deve ser deduzida da tendência dos possíveis para existir), mas também, descendo aos casos particulares, observamos o modo maravilhoso pelo qual leis metafísicas de causa, potência e ação têm seu lugar na totalidade da natureza e observamos que essas leis metafísicas prevalecem sobre as leis puramente geométricas da matéria. Como eu próprio descobri para meu assombro, na explicação das leis do movimento isto é verdade a tal ponto que fui finalmente forçado a abandonar a lei da composição geométrica das forças (conatus), que certa vez defendera na minha juventude quando era então mais materialista, como já expliquei mais longamente alhures. 9

E assim, a razão fundamental para a realidade não só das essências mas também das existências repousa em um Ser único que deve, necessariamente, ser maior, superior e anterior ao mundo, pois através d'Ele não apenas as coisas existentes que formam o mundo, como também todos os possíveis, têm suas realidades. Porém, isso só pode ser procurado em uma única fonte, em virtude da interconexão de todas essas coisas. Ademais, é evidente que dessa fonte as coisas existentes brotam e se produzem continuamente, por ela tendo sido produzidas, uma vez que não se torna claro por que um estado de mundo mais do que um outro, ontem mais do que hoje, deveria dela brotar. Também é óbvio como Deus atua não apenas fisicamente, mas também de forma livre, e como Ele é não apenas a causa eficiente das coisas, mas a causa final, e como n'Ele temos não apenas a razão para a grandeza ou poder do mecanismo do universo como já constituído, mas também a razão da bondade ou sabedoria ao constituí-lo.

E para que não pensem que estou aqui confundindo perfeição moral ou bondade com perfeição metafísica ou grandeza e que, admitindo a última, negue a primeira, deve-se compreender, do já exposto, que não somente o mundo é fisicamente (ou se preferires, metafisicamente) mais perfeito, isto é, que as séries de coisas que têm sido trazidas à existência são aquelas nas quais há, de fato, a maior quantidade de realidade, mas também que o mundo é moralmente perfeito, desde que a perfeição moral é perfeição física, para as próprias mentes. Disto resulta que o mundo não apenas é a mais admirável máquina, mas também, na medida em que é feito de mentes, a melhor república, através da qual se dá às mentes a maior possibilidade de felicidade ou alegria, em que consiste sua perfeição física.

Mas, tu perguntas, não experimentamos exatamente o oposto no mundo? Pois o pior dos males freqüentemente acontece aos muito bons e aos inocentes (tanto entre os animais, como entre os seres humanos), que são feridos e mortos, até mesmo torturados. No fim, o mundo parece mais um caos confuso do que uma coisa ordenada por alguma suprema sabedoria, especialmente se notarmos a conduta do gênero humano. Confesso que, à primeira vista, isso parece desta forma, mas uma análise mais profunda das coisas nos impõe a opinião oposta. Destas considerações que apresentei é óbvio, a priori, que tudo, mesmo as mentes, está na sua maior perfeição.

E, de fato, é injusto formar um juízo a menos que se tenha examinado inteiramente a lei, como dizem os jurisconsultos. Conhecemos apenas uma pequena parte da eternidade que se estende sem medida, pois curta é a memória de muitos milhares de anos que a história nos concede. E, todavia, de tal escassa experiência precipitadamente formamos juízos a respeito do imenso e do eterno, como pessoas nascidas e criadas na prisão ou, se preferires, nas minas subterrâneas de sal da Sarmatia, pessoas que pensam não haver outra luz no mundo senão a luz obscurecida de suas tochas, luz certamente não suficiente para guiar seus passos. Olha para um belo quadro; cobre-o exceto por uma pequena parte. Então, como parecerá ele senão como uma combinação confusa de cores sem encanto e sem arte; na verdade, por mais próximo que o examinemos terá ele essa aparência. Mas tão logo a cobertura seja retirada e possas ver toda a tela de um local adequado, compreenderás que aquilo que parecia manchas acidentais sobre a tela, fora feito com completa arte pelo autor da obra. E o que os olhos descobrem na pintura, os ouvidos descobrem na música. De fato, os mais ilustres mestres da composição muito freqüentemente mesclam dissonâncias com consonâncias a fim de excitar o ouvinte e penetrar-lhe, por assim dizer, de modo que ansioso com o que vai acontecer, o ouvinte sinta o maior prazer quando a ordem for restaurada, exatamente como nos alegramos com pequenos perigos e desventuras, graças ao sentimento ou manifestação de nossa potência ou felicidade; ou como nos deleitamos no espetáculo de trapezistas ou no salto entre espadas devido à habilidade de nos estimular o pavor; ou como, quando por brincadeira, levantamos crianças ao alto como se fôssemos arremessá-las (também por essa razão, quando Christian, rei da Dinamarca, ainda uma criança envolta em faixas, foi carregado por um macaco até a beira do telhado, todos se sentiram aflitos, mas logo em seguida riram quando o animal, como que sorrindo, o colocou seguramente no berço). Por esse princípio, é insípido sempre comer alimentos doces; para excitar o paladar deve-se misturar sabores acres, ácidos e até amargos. Quem não provou coisas amargas, não mereceu as doces nem tampouco as apreciará. O prazer não deriva da uniformidade, pois essa traz futuramente desgosto e nos torna idiotas, não alegres: esse princípio é a lei da alegria.

Mas o que dissemos acerca da parte, ou seja, que pode estar perturbada sem deixar de haver harmonia no todo, não deveria ser entendido como se não houvesse razão nas partes, ou como se fosse suficiente para o mundo inteiro ser perfeito em sua classe mesmo se a raça humana fosse miserável, não prestasse atenção à Justiça no universo, ou não nos assegurasse, como certas pessoas de juízo pobre acreditam a respeito da totalidade das coisas. Pois se deve compreender que, assim como na melhor república constituída cuida-se para que cada indivíduo obtenha, tanto quanto possível, o que lhe é ótimo, o universo seria insuficientemente perfeito a menos que levasse em conta os indivíduos tanto quanto poderia ser feito consistentemente preservando a harmonia do universo. É impossível nessa questão achar um modelo melhor que a própria lei da justiça que manda que cada um participe da perfeição do universo e de sua própria felicidade em proporção a sua própria virtude e na medida que sua vontade tem contribuído para o bem comum. Isso exclui o que denominamos a caridade e o amor de Deus no que consiste toda força e poder da religião cristã, segundo o juízo dos sábios teólogos. Nem parece admirável o fato de que tanto se atribua às mentes no universo, desde que refletem a imagem do Supremo Criador e a Ele se referem não só como máquinas em relação aos seus construtores (como fazem as outras coisas), mas também como cidadãos em relação ao príncipe. Igualmente, essas mentes são destinadas a perdurar tanto tempo quanto o próprio universo, de certa maneira, exprimindo e concentrando em si mesmas o todo de modo que se pode afirmar que são partes totais.

Também devemos sustentar que as aflições, especialmente as dos bons, guiam-nos ao bem maior. Isso é verdadeiro não apenas na Teologia, mas também fisicamente (physice), desde que um grão atirado na terra deve sofrer antes de produzir frutos. E em geral pode-se afirmar que aflições que são temporariamente más são boas quanto aos seus efeitos, uma vez que se constituem em atalhos para uma maior perfeição. 10 Assim é nas coisas físicas onde líquidos que fermentam mais lentamente também demoram a melhorar, mas aqueles em que há uma perturbação mais violenta, mais depressa são melhorados, pois eliminam (impure) partes com mais força. E isso é o que tu denominarias de recuo a fim de saltar para frente com maior força (recuar para melhor saltar). Essas considerações devem ser não somente agradáveis e consoladoras, mas também verdadeiras. E penso que no universo nada é mais verdadeiro do que a felicidade, nem mais feliz ou doce do que a verdade.

Em acréscimo às belezas e perfeições da totalidade das obras divinas, devemos também reconhecer um certo progresso constante e ilimitado em todo o universo, de modo a seguir sempre rumo a um maior desenvolvimento (cultus), exatamente como uma grande parte do nosso mundo está agora cultivado (cultura) e assim tornar-se-á mais e mais. E embora certas coisas regressem a seus estados selvagens originais e outros sejam destruídos e sepultados, devemos, todavia, entender isso do mesmo modo como interpretamos, a pouco, a aflição. De fato, essa destruição e sepultamento nos conduzirão à obtenção de algo melhor, de modo que, em certa medida, lucremos com a perda.

E quanto à objeção de que se assim fosse, então o mundo deveria, há muito tempo, ser um paraíso a resposta é: ainda que muitas substâncias já tenham alcançado uma grande perfeição, todavia, em razão da infinita divisibilidade do contínuo, há sempre partes adormecidas no abismo das coisas a serem despertadas e promovidas a maiores e melhores coisas, ou, em resumo, a um cultivo melhor. Assim, o progresso nunca chega a um fim.

Notas:
(1) A bibliografia apresenta-nos outras traduções possíveis para o título desta obra leibniziana. João Amado, em apêndice a sua tradução do Discurso de Metafísica, propõe Sobre a origem radical das coisas; Paul Schrecker, De la production originelle des choses prise a sa Racine; e tanto Woolhouse e Francks como Garber e Ariew, On the Ultimate Origination of Things. Além disso, Carlos Lopes de Mattos estabelece Da Origem Primeira das Coisas. Nossa tradução busca destacar a intenção de Leibniz no decorrer do texto: reservar ao princípio da razão suficiente o papel de fundamentar os fatos contingentes em necessidades e na razão que Deus teria tido para atualizar uma possibilidade e não outra;
(2) Em Teodicéia, Leibniz afirma que o “mundo é o conjunto total das coisas contingentes” (T. I§ 3), denominando mundo “toda a coleção de todas as coisas existentes, para que não se diga que podem existir vários mundos, em diferentes tempos e lugares. De fato, seria preciso contá-los todos juntos como um só mundo ou, se preferis, como um só universo.” (T. I§ 8 in Gerhardt)
(3) Ver PNG § 8 in Woolhouse e Francks pp.253-266: “ A razão suficiente para a existência do universo nunca pode ser encontrada na série de coisas contingentes, nos corpos e em suas representações na alma. Porque a matéria, nela própria, é indiferente ao movimento ou ao repouso, ou a este movimento ou àquele. Portanto, não podemos achar na matéria uma razão para o movimento e menos ainda para qualquer movimento em particular. E desde que qualquer movimento que se encontra na matéria no presente vem de um movimento prévio, e este também de um outro anterior, não avançaremos muito se assim procedermos interminavelmente pois a mesma questão ainda permanecerá.” Ou ainda M.§37: “E, como todo este pormenor (détail) só implica outros contingentes anteriores que podem ser mais pormenorizados, cada qual necessitando, ainda, de análise semelhante para encontrar sua razão, nada se adianta por este caminho, e é preciso que a razão suficiente ou última esteja fora da seqüência ou séries deste pormenor (détail) das contingências, mesmo que a seqüência seja infinita.” (in Chauí)
(4) Ibid. § 8 in fine: “A razão suficiente, que não necessita de qualquer razão adicional, deve situar-se fora daquela série de coisas contingentes e deve ser descoberta em uma substância que é a causa das séries: deve situar-se em um ser necessário que traz em si a razão de sua própria existência, do contrário ainda continuaríamos a não possuir uma razão suficiente na qual poderíamos parar. E aquela razão final para as coisas é o que denominamos Deus.” Além disso, em M. § 38: “Por esse motivo, a razão última das coisas deve encontrar-se numa substância necessária, na qual o pormenor das modificações só esteja eminentemente, como na origem. É o que chamamos Deus.” (in Chauí);
(5)Ver M.§39: “Ora, sendo esta substância razão suficiente de todo aquele pormenor que, por sua vez, está entrelaçando em toda parte, há um só Deus e esse Deus é suficiente.” (in Chauí);
(6) As verdades contingentes são também denominadas, por Leibniz, verdades de fato, verdades da existência; enquanto as verdades metafísicas, verdades eternas, também assumem as denominações verdades da razão, verdades lógicas. (cf. Mates, p.105)
(7) Freqüentemente a idéia leibniziana parece ser a de que Deus, ao criar o atual mundo, considerou várias possibilidades. Assim, em PNG§ 10: “Pois no entendimento de Deus todas as coisas possíveis expõem suas pretensões à existência em proporção às suas perfeições.” (in Woolhouse e Francks) Também em M.§ 54: “E esta razão só pode encontrar-se na conveniência ou nos graus de perfeição contidos nesses mundos, tendo cada possível o direito de aspirar à existência pela medida da perfeição que envolver.” (in Chauí) Então, dessas possibilidades, Deus, em sua sabedoria e bondade, escolheu a melhor, atualizando-a. Contudo, aqui, Leibniz parece admitir que as próprias possibilidades, possuindo “uma certa exigência...uma pretensão à existência”, como que trouxeram a si mesmas, e por conseqüência, o melhor dos mundos possíveis, à existência;
(8) Ver DM seção 6: “Deus escolheu [criar] porém, o mais perfeito, quer dizer, ao mesmo tempo o mais simples em hipóteses e o mais rico em fenômenos, tal como seria o caso duma linha geométrica de construção fácil e de propriedades e efeitos espantosos e de grande extensão.” (in Chauí);
(9) Ver Ensaio de Dinâmica in Woolhouse e Francks pp.153-179. Este ensaio, publicado em Acta Eruditorum em abril de 1695, é um importante relato sobre a noção leibniziana de força, noção esta que é o centro de toda sua Dinâmica. Tem como ponto de partida o entendimento de que a concepção cartesiana de uma substância corpórea como simples extensão é insatisfatória, exatamente por omitir a idéia de força. É a força que constitui a natureza mais profunda dos corpos, além de ser a realidade não evidente do movimento. Na verdade, sob o mundo extenso da matéria em movimento (o mundo tal como concebido pela nova filosofia mecanicista) encontra-se a força;
(10) Ver PNG seção 13: “Pois tudo nas coisas está ordenado de uma vez por todas com tanta regularidade e interconexão quanto possível, porque a Suprema Sabedoria e Bondade não pode funcionar exceto de maneira perfeita e harmoniosa. (...) A beleza do universo poderia ser vista em cada alma individual, se pudéssemos tão somente revelar tudo que nele está envolto e que se tornará perceptível apenas com o seu desenvolvimento no tempo. (...) Somente Deus tem um conhecimento nítido de tudo, porque Ele é sua origem.” (in Woolhouse e Francks)