por Alvin Plantinga
Alvin Carl Plantinga (1932) é um filósofo norte-americano conhecido mundialmente por seu trabalho em epistemologia, metafísica e filosofia da religião
A ciência empírica ocidental moderna tem certamente sido o
desenvolvimento intelectual mais impressionante desde o séc. XVI. A religião
tem marcado presença desde há bastante mais tempo, é claro, e está hoje em
crescimento, talvez como nunca o esteve antes. (É verdade que há a tese do
secularismo, segundo a qual a ciência e a tecnologia, por um lado, e a
religião, por outro, estão inversamente relacionadas: à medida que a primeira
cresce, a segunda diminui. Contudo, o ressurgimento da religião e da crença religiosa
em muitas partes do mundo levantam dúvidas consideráveis a esta tese.) A
relação entre estas duas grandes forças culturais tem sido tumultuosa,
multifacetada e confusa. Este artigo concentrar-se-á na relação entre ciência e
as religiões teístas: cristianismo, judaísmo, islamismo, sendo o teísmo a
crença de que há uma pessoa imaterial todo-poderosa, omnisciente e
perfeitamente boa que criou o mundo, criou os seres humanos “à sua imagem,” e a
quem devemos reverência, obediência e fidelidade. A maior parte deste artigo
aplicar-se-á também às variedades monoteístas e henoteístas de budismo e
hinduísmo.
Há muitos problemas e questões importantes nesta área; este
artigo concentrar-se-á apenas em alguns deles. A questão que talvez mais salte
à vista é se a relação entre religião e ciência se caracteriza pelo conflito ou
pela concórdia. (Claro que é possível que exista simultaneamente
conflito e concórdia: conflito no que respeita a certos aspectos, e concórdia
noutros.) Esta questão será o ponto central do artigo. Outras questões
importantes a considerar serão a natureza da religião, a natureza da ciência,
as epistemologias da ciência e, em particular, da crença religiosa, e a questão
de como a última figura no conflito ou concórdia (alegado ou efectivo) entre a
religião e a ciência.
A primeira coisa a dizer, aqui, é que é extremamente difícil
caracterizar estes fenómenos. Primeiro, considere-se a ciência: o que é
exactamente a ciência? Como podemos caracterizá-la? Quais são as condições
necessárias e suficientes para que uma dada investigação ou teoria ou tese seja
científica, faça parte da ciência? Está longe de ser fácil sabê-lo. Propôs-se
várias condições essenciais da ciência. Segundo Jacques Monod, “O crucial do
método científico é o postulado de que a natureza é objectiva [...] Por outras
palavras, a negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento
possa ser obtido interpretando a natureza em termos de causas finais [...]”
(Monod 1971, 21, itálico de Monod). Na década de 1930, o eminente químico alemão
Walter Nernst defendeu que a ciência, por definição, exige um universo
infinito; logo, a teoria do Big Bang, afirmou, não é ciência (von Weizsäcker
1964, 151). Outra restrição proposta: a ciência não pode envolver juízos
morais, ou juízos de valor mais em geral.
Há obviamente uma conexão íntima entre a natureza da ciência
e o seu objectivo, as condições sob as quais algo é ciência bem-sucedida. Há
quem diga que a ciência é explicação (seja isto posto, ou não, ao serviço da
verdade). Há quem afirme (os realistas) que o objectivo da ciência é apresentar
teorias verdadeiras; outros afirmam que o objectivo da ciência é
fornecer teorias empiricamente adequadas, sejam verdadeiras ou não
(van Fraassen 1980). Há quem diga que a ciência não pode lidar com o subjectivo,
mas apenas como que é público e partilhável (e, portanto, os relatos sobre a
consciência constituem uma matéria mais adequada de estudo científico do que a
própria consciência). Há quem diga que a ciência só pode lidar como que é
repetível; há quem o negue. No furor sobre o ensino do “Desígnio Inteligente”
(DI) nas escolas públicas, houve quem dissesse que as teorias científicas têm
de ser falsificáveis, e, dado que a proposição de que as coisas vivas
(os coelhos, por exemplo) foram concebidas por um ou mais agentes inteligentes
não é falsificável, o DI não é ciência. Há quem faça notar que muitas teses
eminentemente científicas — por exemplo, há electrões — não são
falsificáveis isoladamente: o que é falsificável são teorias completas
sobre electrões. E apesar de a proposição de que as coisas vivas foram
concebidas por um ser inteligentenão ser falsificável isoladamente, a
proposição de que um ser inteligente concebeu e criou coelhos de meio
quilo que vivem em Cleveland é claramente falsificável (e falsa). O
primeiro grupo pode responder que esta proposição sobre coelhos de meio quilo é
apenas equivalente, na verdade, às suas implicações empíricas, i.e., à
proposição de que há coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland, de modo que
o pedaço sobre quem os concebeu desaparece, na verdade. O segundo grupo pode
então retorquir que, sendo assim, o mesmo tem de se aplicar às teorias sobre
electrões; mas nesse caso as teorias sobre electrões são apenas equivalentes,
na verdade, às suas implicações empíricas, de modo que os electrões
desaparecem.
Há ainda quem afirme que a ciência se limita ao “naturalismo
metodológico” (NM) — a ideia de que nem os dados para uma investigação
científica nem uma teoria científica podem referir-se apropriadamente a seres
sobrenaturais (Deus, anjos, demónios); assim, não se poderia apropriadamente
propor (como parte da ciência) uma teoria segundo a qual a irrupção recente de
comportamentos estranhos e irracionais em Washington D.C. se deve ao aumento de
comportamentos demoníacos nessa área. Como saber se o NM é realmente uma
limitação essencial da ciência? Há quem diga que é apenas uma questão de
definição; é o caso de Nancey Murphy: “[...] há o que poderíamos chamar ateísmo
metodológico, que é por definição comum a toda a ciência da natureza”
(Murphy 2001, 464). E continua: “Trata-se simplesmente do princípio de que as
explicações científicas procedem em termos de entidades e processos naturais (e
não sobrenaturais).” De modo semelhante, Michael Ruse: “ Os criacionistas crêem
que o mundo começou milagrosamente. Mas os milagres estão fora dos limites da
ciência, que por definição lida apenas com o natural, o repetível, o que é
regido por leis” (Ruse 1982, 322). Por definição do quê? Por definição do termo
“ciência,” supostamente. Mas há então quem pergunte: que dizer do Big Bang? Se
afinal for irrepetível, teremos de concluir que não pode ser estudado
cientificamente? E considere-se a tese de que a ciência, por definição, lida
apenas com o que é regido por leis — leis da natureza, supostamente. Alguns
empiristas (em particular, Bas van Fraassen) defendem que não há leis
da natureza (só há regularidades): se tiverem razão, seguir-se-á que não há
coisa alguma para ser estudada pela ciência? Além disso, apesar de algumas
pessoas argumentarem que o NM é uma limitação essencial da ciência, outras põem
isso em causa: mas pode uma disputa séria ser resolvida citando apenas uma
definição?
Apresentar condições necessárias e suficientes plausíveis da
ciência está consequentemente longe de ser trivial; e muitos filósofos da
ciência desistiram do “problema da demarcação,” o problema de propor tais
condições (Laudan 1988). Talvez o melhor que podemos fazer é apontar para
exemplos paradigmáticos de ciência e exemplos paradigmáticos de não-ciência. Claro
que pode ser um erro supor que estamos aqui perante uma só
actividade, e um só objectivo. As ciências são muitíssimo variáveis; há o
género de actividade que ocorre em ramos muitíssimo teóricos da física (por
exemplo, investigações sobre o que aconteceu nos primeiros 10-43 segundos,
ou a tentativa de descobrir como sujeitar a teoria das cordas a verificação
empírica). Mas há também o género de projecto exemplificado por uma tentativa
de saber como a população de touconderos respondeu à devastação da selva
amazónica ao longo dos últimos vinte e cinco anos. No primeiro tipo de
explicação pode fazer sentido pensar que o que se quer é uma teoria
empiricamente adequada, pondo-se pelo menos temporariamente entre parêntesis a
questão da verdade da teoria. Mas o mesmo não acontece em casos do segundo
tipo; aqui, nada servirá a não ser a verdade sóbria.
O mesmo acontece com o naturalismo metodológico. Alguns
projectos científicos são claramente limitados pelo NM (veja-se abaixo); uma
condição de adequação teórica, nesses casos, será certamente que a explicação
em causa seja naturalista. Mas é o NM em si parte da própria natureza da
ciência enquanto tal? Segundo Isaac Newton, que se diz muitas vezes ter sido o
maior cientista de todos os tempos, as órbitas dos planetas cairiam no caos sem
intervenção externa; consequentemente, propôs que Deus ajustava periodicamente
as suas órbitas. Apesar de esta ser uma hipótese de que já não precisamos, será
óbvio que acrescentá-la à explicação de Newton dos movimentos dos planetas tem
como resultado algo que não é realmente ciência? Isso parece desnecessariamente
excessivo.
Talvez devamos ver o conceito de ciência como um daqueles
conceitos aglomerativos para os quais Tomás de Aquino e Ludwig Wittgenstein
chamaram a atenção. Talvez haja várias actividades bastante diferentes a que
damos o nome “ciência;” estas actividades relacionam-se entre si por semelhança
e analogia, mas não há uma actividade única que seja apenas ciência em si. Há
projectos para os quais o critério de sucesso envolve fornecer teorias ¬verdadeiras; há
outros onde o critério de sucesso envolve fornecer teorias que são
empiricamente adequadas, sejam ou não também verdadeiras. Há projectos
limitados pelo NM; há outros projectos que não têm essa limitação. Estes projectos
ou actividades caem todos sob o significado do termo “ciência;” mas não há uma
actividade única da qual todos sejam exemplos. (Do mesmo modo, o xadrez, o
basquetebol e o póquer são todos jogos; mas não há um jogo único do qual todos
sejam versões.) Talvez o melhor que podemos fazer, com respeito à
caracterização da ciência, é dizer que o termo “ciência” se aplica a qualquer
actividade que seja 1) uma actividade sistemática e disciplinada que visa
descobrir a verdade sobre o mundo,1 e 2) tem um envolvimento empírico
significativo. Isto é, evidentemente, vago (quão sistemática? Quão
disciplinada? Quanto envolvimento empírico?) e talvez demasiado tolerante. (A
astrologia conta como ciência, ainda que seja má ciência?) Apesar de tudo,
temos muitos exemplos excelentes de ciência, e exemplos excelentes de
não-ciência.
Se é difícil explicar a natureza da ciência, não é muito
mais fácil dizer o que é exactamente uma religião. Claro que há muitíssimos
exemplos: cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e muitos
outros. Que características são necessárias e suficientes para que algo seja
uma religião? Como distinguimos uma religião de um modo de vida, como o
confucionismo? Não é fácil dizer. Nem todas as religiões envolvem a crença em
algo como o Deus todo-poderoso, omnisciente e moralmente perfeito das religiões
teístas, ou até em seres sobrenaturais. (Claro que uma maioria substancial das
religiões envolve tais crenças.) Com respeito à nossa investigação, o que é de
especial importância é a noção de uma crença religiosa: como tem de
ser uma crença para ser religiosa?
Uma vez mais, não é fácil dizer. Para citar uma vez mais o
furor quanto ao desígnio inteligente, há quem diga que a proposição de que há
um arquitecto inteligente do mundo vivo é religião, e não ciência. Mas nem toda
a crença que envolva um arquitecto inteligente — na verdade, nem toda a crença
que envolva Deus — é religiosa. Segundo o livro de Tiago do Novo Testamento,
“os demónios crêem [que Deus existe] e enchem-se de terror”; as crenças dos
demónios não são, presumivelmente, religiosas.2 Uma pessoa poderia propor
teorias sobre um ser omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte
crucial de um sistema metafísico: a crença em tais teorias não tem de ser
religiosa. E que dizer de um sistema de crenças que responde às mesmas grandes
questões humanas a que dão resposta os exemplos óbvios de religiões? Questões
sobre a natureza fundamental do universo, e do que é sumamente real e básico
nele, sobre o lugar dos seres humanos nesse universo, sobre se há pecado ou
algo análogo e, se há, o que fazer quanto a isso, se temos de tentar melhorar a
condição humana, se os seres humanos sobrevivem às suas mortes e como deve agir
uma pessoa racional. Uma vez mais, não é fácil dizer; talvez não. A verdade
aqui é, talvez, que uma crença não é religiosa apenas em si. A
propriedade de ser religiosa não é intrínseca da crença; é antes uma
propriedade que uma crença adquire quando funciona de certo modo na vida de uma
dada pessoa ou comunidade. Para ser uma crença religiosa, a crença em questão
teria de estar apropriadamente conectada com atitudes caracteristicamente
religiosas por parte do crente, nomeadamente atitudes de veneração, amor,
compromisso, maravilhamento e afins. Considere-se alguém que crê que a pessoa
de Deus existe, certamente, porque a sua existência ajuda a resolver vários
problemas metafísicos (por exemplo, sobre a natureza da causalidade, a natureza
das proposições, propriedades e conjuntos, e a natureza da função apropriada em
criaturas que não sejam artefactos humanos). Contudo, esta pessoa não tem
qualquer inclinação para venerar ou amar Deus, nenhum compromisso para tentar
levar por diante os projectos de Deus no nosso mundo; talvez, como os demónios,
odeie Deus e faça intencionalmente tudo o que pode para frustrar os propósitos
de Deus no mundo. Para tal pessoa, a crença de que a pessoa de Deus existe não
tem de ser religiosa. Deste modo, é possível que duas pessoas partilhem uma
dada crença que funciona como religiosa na vida de apenas uma delas.
Consequentemente, é extremamente difícil apresentar
condições necessárias e suficientes (informativas) tanto da ciência como da
religião. Talvez para os nossos propósitos presentes isso não seja um problema
sério; temos vários excelentes exemplos de cada uma delas, e talvez isso seja
suficiente para a nossa investigação.
Há muitas questões epistemológicas interessantes quanto à
ciência. Um tópico central tem sido a subdeterminação da teoria pelos dados: os
dados a favor de uma teoria raramente implicam a teoria, caso em que haverá
várias teorias empiricamente equivalentes — teorias com as mesmas consequências
com respeito à experiência. Podem as teorias empiricamente equivalentes diferir
em estatuto ou valor epistémico? Em caso afirmativo, o que faz a diferença?
Neste caso é comum apelar para as chamadas virtudes teóricas, como a
simplicidade, fecundidade, beleza, etc. O que pensar da “indução pessimista,”
segundo a qual quase todas as teorias científicas do passado foram mais tarde
rejeitadas? Deve isso reduzir a nossa confiança nas teorias científicas
actuais? Das convicções científicas actuais, quantas constituem conhecimento,
se é que algumas o são? E até onde vai o método científico? Haverá assuntos que
a ciência não tem competência para lidar? É a ciência mais competente para
lidar com uns assuntos do que com outros? Os modos científicos de proceder
parecem ter sido mais bem-sucedidos nas ciências duras; as ciências humanas
parecem ficar para trás. Haverá diferenças quanto à boa fundamentação epistémica
entre as diferentes ciências, ou talvez entre as ciências duras e as ciências
mais leves? Perguntas deste género, apesar de serem de grande interesse
intrínseco, não são directamente relevantes para a nossa investigação. O que é
mais importante ver é que a epistemologia da ciência é na realidade a
epistemologia das principais faculdades cognitivas humanas: memória, percepção,
intuição racional (lógica e matemática), testemunho, talvez a empatia de Reid,
indução, etc. O que é característico da ciência é que estas faculdades são
empregues de um modo particularmente disciplinado e sistemático, e que há uma
ênfase particular na experiência perceptiva.
Com respeito à crença religiosa, também há várias questões
epistemológicas. Haverá bons argumentos a favor da existência de Deus? Se não
há, é isso importante? É a existência do mal, em todas as horríveis formas que
exibe, indício contra a crença teísta? É algo que refuta da
crença teísta? E quanto à questão do pluralismo: a religião conhece tantos
tipos diferentes — cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo (com
diferentes versões de cada tipo), mas também vários tipos menos comuns. Segundo
Jean Bodin, “cada uma é refutada por todas” (Bodin 1975, 256); constituirá esta
diversidade algo que refuta cada variedade particular de crença religiosa?
Algumas doutrinas religiosas — Trindade, Incarnação, Expiação — não são fáceis
de entender; significa isso que não podem ser conhecidas ou sequer ser objecto
de crença racional? Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão,
significa isso que é na melhor das hipóteses seriamente insegura, de modo que é
apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Estas questões têm sido
mais aturadamente investigadas no que respeita à crença cristã; assim, este
artigo incide principalmente em algumas questões que dizem respeito à
epistemologia da crença cristã.
Para os nossos propósitos, talvez a questão epistemológica
central seja esta: qual é a fonte da racionalidade, ou aval, ou estatuto
epistémico positivo da crença religiosa, se é que o tem? É do mesmo género do
que o que tem a crença nos ensinamentos da ciência actual? São os indícios a
favor da crença religiosa, se é que existem, do mesmo género do que os indícios
a favor das crenças científicas? Ou há uma fonte especial de estatuto
epistémico positivo da crença religiosa? Esta é, na verdade, uma versão
contemporânea de uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a
fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos cogentes
(argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá) a favor da
crença religiosa, e se a existência de argumentos cogentes é necessária para a
aceitação racional da crença religiosa.
Aqui, há fundamentalmente duas perspectivas. Segundo o
“indiciarismo,” a fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se
é que tem tal estatuto, é apenas a razão — o conjunto das faculdades racionais,
incluindo, principalmente, a percepção, a memória, a intuição racional, o
testemunho, etc. A fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa é,
consequentemente, a mesma que existe para a crença científica. Esta perspectiva
remonta pelo menos a John Locke (1689) e tem representantes contemporâneos
proeminentes. Deste ponto de vista, a existência de argumentos cogentes a favor
da crença religiosa é uma condição necessária da aceitação racional dessa
crença, ou pelo menos está intimamente relacionada com a aceitação racional.
Algumas pessoas que aceitam este ponto de vista crêem que esses argumentos
cogentes não existem; assim, rejeitam a crença religiosa por ser infundada e
racionalmente inaceitável (Mackie 1982); outros sustentam que há de facto
excelentes argumentos a favor do teísmo, e até especificamente a favor da
crença cristã. Aqui o porta-voz contemporâneo mais proeminente seria Richard
Swinburne, cuja obra dos últimos trinta anos, aproximadamente, teve como
resultado o desenvolvimento mais poderoso, completo e sofisticado da teologia
natural que o mundo viu até hoje (veja-se, e.g., Swinburne 1979, 2004; 1981,
2005).
A outra perspectiva principal, adoptada, por exemplo, por
Tomás de Aquino (Summa Theologiae) e João Calvino (1559), é que 1) a crença em
Deus e 2) os ensinamentos cristãos podem ser objecto de aceitação racional
ainda que não existam argumentos cogentes a seu favor que partam do que a razão
nos oferece; têm uma fonte de aval ou estatuto epistémico positivo independente
do que a razão nos dá. Este ponto de vista tem também representação
contemporânea proeminente (Alston 1991; Plantinga e Wolterstorff 1984;
Plantinga 2000). Usando a terminologia de Calvino, há o sensus
divinitatis, que é uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do
Espírito Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo.
As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a
fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais
crenças são irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas
de especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse
necessariamente cega ou um salto no escuro. Na verdade, João Calvino define a
fé como “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para
connosco [...]” (Calvino 1559, p. 551, itálico meu). Deste ponto de vista, a
religião e a fé têm uma fonte de crença apropriadamente racional independente
da razão e da ciência; seria portanto possível que a religião e a fé
corrigissem a ciência e a razão, e também que fossem por estas corrigidas.
Há alguma razão para pensar que se o teísmo for de facto
verdadeiro, se realmente houver uma pessoa todo-poderosa, omnisciente e
perfeitamente boa que criou o mundo e os seres humanos à sua imagem, então a
crença religiosa será independente dos argumentos baseados na razão; não
exigirá tais argumentos para ser racional ou ter estatuto epistémico positivo.
Pois se o teísmo for verdadeiro, Deus presumivelmente quererá que os seres
humanos conheçam a sua presença (e de facto a vasta maioria da população humana
acredita em Deus ou algo parecido a Deus); disporá portanto as coisas de modo a
que os seres humanos sejam capazes de ter conhecimento de si. Mas se o
conhecimento de Deus dependesse dos argumentos teístas, ou de outros argumentos
que resultam do que a razão nos dá, então, como afirma Tomás, só alguns seres
humanos chegariam ao conhecimento desta verdade, e mesmo assim só depois de
muito tempo, e com uma mistura substancial de erro.
Comecemos com a concórdia. Os primeiros pioneiros e heróis
da ciência ocidental — Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc. — eram
todos seriamente cristãos, ainda que ocasionalmente, como no caso de Newton,
não fossem cristologicamente ortodoxos. Além disso, muitos autores (Foster
1934, 1935, 1936; Ratzsch 2009) fizeram notar que a crença teísta e a ciência
empírica exibem uma concórdia profunda, combinando-se bem entre si. Isto
resulta em parte das doutrinas da criação que as religiões teístas abraçam — em
particular, dois aspectos dessas doutrinas. Primeiro, há a ideia de que Deus
criou o mundo, tendo também consequentemente, é claro, criado os seres humanos.
Além disso, criou os seres humanos à sua imagem. Ora Deus, segundo a crença
teísta, é uma pessoa: um ser que tem conhecimento, afeição (gosta de umas
coisas e não de outras) e vontade executiva, podendo agir com base nas suas
crenças para atingir os seus fins. Uma das características centrais da imagem
divina nos seres humanos é, então, a capacidade para formar crenças e adquirir
conhecimento. Como afirmou Tomás de Aquino, “Uma vez que se diz que os seres
humanos foram feitos à imagem de Deus em virtude de terem uma natureza que
inclui um intelecto, tal natureza é à imagem de Deus sobretudo em virtude de
ser o que mais consegue imitar Deus” (ST Ia q. 93 a. 4). Deus criou portanto
quer os seres humanos quer o mundo, e dispôs as coisas de modo a que os
primeiros conheçam o segundo. Concebendo a ciência no seu nível mais básico
como o projecto de adquirir conhecimento de nós e do nosso mundo, é claro,
desta perspectiva, que a doutrina da imago dei subscreve este
projecto. Na verdade, a ciência é um exemplo claro do desenvolvimento e
aprofundamento da imagem de Deus nos seres humanos, tanto individual como
colectivamente.
Segundo, há o pensamento de que a criação divina é contingente. Segundo
o teísmo, muitas das propriedades de Deus — a sua omnisciência e omnipotência,
a sua bondade e amor — são-lhe essenciais: tem-nas em todos os mundos possíveis
em que existe. (E uma vez que, segundo o pensamento teísta, Deus é um ser
necessário, existindo em todos os mundos possíveis, tem essas propriedades em
todos os mundos possíveis.) Mas isso não acontece, contudo, com a sua
propriedade da criação. Deus não está obrigado, pela sua natureza ou seja pelo
que for, a criar o mundo; trata-se, antes, de uma acção livre da sua parte.
Além disso, quando Deus cria, não está obrigado a fazê-lo de qualquer modo
particular, nem a criar quaisquer tipos particulares de seres; que tenha criado
os tipos de coisas que efectivamente encontramos é uma vez mais contingente, uma
acção livre da sua parte.
É esta doutrina da contingência da criação divina que subjaz
ao carácter empírico da ciência ocidental moderna (Ratzsch, 2009). Pois o
domínio do necessário é (na sua maior parte) o domínio do conhecimento a
priori; é onde temos a matemática e a lógica e grande parte da filosofia.3 O
que é contingente, por outro lado, é o território ou domínio do
conhecimento a posteriori,4 o género de conhecimento produzido pela
percepção, memória e os métodos empíricos da ciência. Esta relação entre a
contingência da criação e a importância do empírico foi reconhecida desde muito
cedo. Assim, escreveu Roger Cotes, no prefácio ao Principia
Mathematica, de Newton:
“Sem dúvida alguma, este mundo, tão diversificado com essa
pluralidade de formas e movimentos que nele encontramos, de nada poderia provir
senão da vontade perfeita de Deus, dirigindo-o e presidindo-o.
É desta fonte que essas leis, a que chamamos leis da
natureza, fluíram, e nas quais se vê muitos traços do mais sábio engenho,
mas nem a mínima sombra de necessidade. Esta,consequentemente, não devemos
procurar partindo de conjecturas incertas, mas antes descobrir pela
observação e pela experimentação.” (Cotes 1953, 132-133; itálicos meus)
O que vimos é que, de certo modo, a crença teísta sustenta a
ciência moderna ao permitir ou sancionar todo o projecto da investigação
empírica; afirma-se também por vezes que a ciência sustenta a crença teísta.
Neste caso, há vários argumentos, que historicamente se agruparam em dois tipos
básicos: biológicos e cosmológicos. Um exemplo do primeiro tipo é o argumento
proposto por Michael Behe (Behe, 1996), segundo o qual algumas estruturas ao
nível molecular exibem uma “complexidade irredutível.” Estes sistemas exibem
várias partes que se ajustam delicadamente e interagem entre si, sendo que
todas têm de estar presentes e funcionando apropriadamente para que o sistema
faça o que faz; a eliminação de qualquer das partes impediria o seu
funcionamento. Entre os fenómenos que Behe cita encontra-se o estolho
bacteriano, os cílios usados por vários tipos de células para se locomoverem,
entre outras funções, a coagulação do sangue, o sistema imunitário, o
transporte de materiais nas células e a sequência incrivelmente complexa e em
cascata de reacções bioquímicas e acontecimentos que ocorrem na visão. Tais
estruturas e fenómenos irredutivelmente complexos, defende, não poderiam ter
surgido por evolução darwinista gradual, passo-a-passo (sem a intervenção da
mão de Deus ou de qualquer outra pessoa); em qualquer caso, a probabilidade de
isso acontecer seria diminuta. Estes são exemplos que apresentam, pois, o que
Behe denomina um desafio liliputiano ao darwinismo cego; se ele tiver razão,
constituem também um desafio colossal ao darwinismo. Mas não se limitam a pôr
em causa o darwinismo; foram também, afirma, obviamente concebidos; que
foram concebidos é tão óbvio como um elefante numa sala de estar: “para uma
pessoa que não se sinta obrigada a restringir a sua procura a causas
não-inteligentes, a conclusão directa é que muitos sistemas bioquímicos foram
concebidos” (Behe, p. 193). Outros, por exemplo, Paul Draper (2002) e Kenneth
R. Miller (1999, 130-64), argumentam que Behe não provou o que pretendia.
Um segundo tipo de argumento a favor do teísmo parte do ajustamento
delicado aparente de vários parâmetros físicos. A partir dos anos sessenta e do
começo dos setenta, os astrofísicos, entre outros, deram-se conta que várias
das constantes físicas básicas têm de se situar dentro de limites muito
estreitos para que a vida inteligente se desenvolva — em qualquer caso, de um
modo semelhante ao que pensamos que efectivamente ocorreu. Assim, B. J. Carr e
M. J. Rees:
“As características básicas das galáxias, estrelas, planetas
e do mundo quotidiano são essencialmente determinadas por algumas constantes
microfísicas e pelos efeitos da gravitação [...] Vários aspectos do nosso
universo — alguns dos quais parecem pré-requisitos para a evolução de qualquer
forma de vida — dependem muito delicadamente de “coincidências” aparentes entre
as constantes físicas.” (Carr e Rees, 1979, 605).
Por exemplo, se a força da gravidade fosse mais forte, ainda
que ligeiramente, todas as estrelas seriam gigantes azuis; se fosse muito
ligeiramente mais fraca, todas seriam anãs vermelhas; em nenhum desses casos
poderia a vida ter-se desenvolvido (Carter 1979, 72). O mesmo se pode dizer das
forças nucleares fracas e fortes; se qualquer delas tivesse sido ainda que
ligeiramente diferente, a vida, em qualquer caso a vida do género que temos,
não poderia provavelmente ter-se desenvolvido.
Aparentemente, a vida é possível apenas porque o universo
está a expandir-se na proporção exactamente necessária para evitar o colapso. E
no passado o ajuste delicado teve de ser ainda mais extraordinário:
“[...] sabemos que teve de ter havido um equilíbrio muito
delicado entre os efeitos contrários da expansão explosiva e da contracção
gravitacional que, na época mais recuada sobre a qual podemos sequer fingir
falar (denominada tempo de Planck, 10-43segundos depois do Big Bang), teria
correspondido ao grau incrível de precisão representado por um desvio da
unidade no seu rácio de apenas uma parte em 10 elevado à sexagésima.”
(Polkinghorne 1989, 22)
Outros exemplos: o valor da constante cosmológica, do valor
da expectativa de vácuo do campo de Higgs, e o rácio da massa entre o protão e
o electrão têm de estar delicadamente ajustados num grau incrível para que o
universo permita a vida (Barr 2003, 123-130). Uma explicação particularmente
bem informada e tecnicamente pormenorizada de alguns destes ajustamentos
delicados encontra-se em Robin Collins, “Evidence of Fine-Tuning” (Collins
2003). Há quem considere que estas enormes coincidências aparentes substanciam
a tese teísta de que o universo foi criado por um Deus pessoal que tem a
intenção de que haja vida, e na verdade vida inteligente; consideram que o
ajustamento delicado oferece os elementos para um argumento teísta
apropriadamente restringido. Estes argumentos assumem várias versões; talvez a
mais bem-sucedida delas seja a que argumenta que a probabilidade epistémica
destes fenómenos de ajuste delicado é muito maior sob a hipótese teísta do que
a sua probabilidade epistémica sob a hipótese ateísta do acaso. Aqui, a
conclusão não é (enquanto tal) que o teísmo é provavelmente verdadeiro, mas
antes que o teísmo é muito mais bem sustentado por estes fenómenos do que a
hipótese do acaso (Swinburne 2003; Collins 1999).
As objecções são muito diversificadas. Há quem ofereça estes
argumentos, em particular quem está associado ao chamado movimento do “Desígnio
Inteligente,” considerando-os contribuições para aciência e não para a
filosofia ou para a teologia; a objecção mais comum é que não obedecem às
condições necessárias para ser ciência, em particular porque a conclusão, que o
universo foi concebido por um ser inteligente, não é falsificável. Outros
há (como vimos) que respondem que a falsificabilidade não é comummente uma
propriedade de proposições individuais, mas antes de teorias completas, e que
as teorias que envolve o desígnio inteligente podem muito bem ser
falsificáveis.
Uma objecção mais interessante aos argumentos do ajuste
delicado é a sugestão da “multiplicidade de universos”: talvez haja muitíssimos
universos ou mundos diferentes, talvez em número infinito; as constantes
cosmológicas assumem diferentes valores em mundos diferentes, de modo que
muitíssimos conjuntos diferentes de tais valores (talvez todos os possíveis)
são exemplificados num ou noutro mundo. Não poderia haver um ciclo eterno de
“Big Bangs,” seguidos de expansão até um certo limite, e depois uma contracção até
ao “Big Crunch,” no qual os valores cosmológicos são arbitrariamente
reiniciados? (Dennett 1995, 179) Alternativamente, não poderia ter ocorrido que
no Big Bang houve uma inflação inicial enorme, resultando daí muitos cosmoi,
com muitos valores diferentes nas suas constantes físicas? Em qualquer dos
casos não é surpreendente que num ou noutro dos universos resultantes, os
valores das constantes cosmológicas sejam tais que permitam a vida. Nem é
surpreendente que o universo em que nos encontramos tenha valores que permitam
a vida; não poderíamos existir em qualquer outro. Sendo assim, o argumento do
ajuste delicado não é eficaz: a probabilidade de haver ajuste delicado dada a
hipótese da pluralidade de mundos juntamente com o ateísmo é pelo menos tão
grande quanto a probabilidade do ajuste delicado juntamente com o teísmo. Há
respostas (por exemplo, que nesta maneira de ver as coisas teria de haver um
gerador de universos que estivesse, também ele, delicadamente ajustado (Collins
1999), ou que mesmo que seja provável que alguns universos estejam
delicadamente ajustados, continua a ser verdade que a probabilidade de
que este universo esteja delicadamente ajustado não é afectada pela
sugestão do pluriverso (White 2003)) e respostas às respostas, etc.; não há consenso,
o que não é surpreendente, quanto a saber se estes argumentos do ajuste
delicado são bem-sucedidos.
A doutrina cristã da criação sustenta uma concórdia profunda
entre a crença cristã e a ciência; contudo, é claro que é compatível com este
género de concórdia que também haja conflito. Muitos autores afirmaram existir
conflito, ou até guerra, entre a religião e a ciência (Draper 1875; White
1895). Isto é certamente demasiado forte; mas é óbvio que a relação entre as
duas nem sempre tem sido suave e irénica. Há o famoso incidente de Galileu,
muitas vezes retratado como uma disputa no seio da hierarquia católica,
representando as forças da repressão e da tradição, a voz do velho mundo, a mão
morta do passado, e, por outro lado, as forças do progresso e a suave voz da
razão e da ciência. Este modo de ver a questão é simplista (Brooke 1991, 8-9);
em causa estavam muitos outros factores. O pensamento aristotélico dominante do
dia era fortemente apriorístico; logo, parte do que estava em causa era uma
disputa sobre a importância relativa da observação e do pensamento a
priori na astronomia. Em causa estavam também questões sobre o que a
Bíblia cristã (e judaica) ensina nesta área: será que uma passagem como a de
Josué 10:12-15 (em que Josué ordenou ao Sol para se imobilizar) favorece o
sistema ptolemaico em detrimento do coperniciano? E é claro que as questões
habituais de poder e autoridade estavam também presentes.5
Mais recentemente, um lugar central de alegado conflito tem
sido a teoria da evolução. Este pânico particular está, é claro, ainda muito
presente. Muitos fundamentalistas cristãos aceitam uma interpretação literal da
narrativa da criação dos primeiros dois capítulos do Génesis; consideram por
isso incompatíveis as explicações darwinistas contemporâneas das nossas origens
e a fé cristã, pelo menos tal como a entendem. Muitos fundamentalistas
darwinistas (como o falecido Stephen J. Gould lhes chamava) aceitam essa moção:
também eles defendem que há conflito entre a evolução darwinista e a crença cristã
ou teísta clássica. Os contemporâneos que defendem esta perspectiva do conflito
incluem, por exemplo, Richard Dawkins (1986, 2003) e Daniel Dennett (1995). Uma
parte importante do alegado conflito depende da crença cristã de que os seres
humanos e as outras criaturas foram concebidos — concebidos por Deus;
segundo a evolução, contudo (pelo que dizem Dawkins e Dennett), os seres
humanos não foram concebidos, sendo antes produto do processo cego sem direcção
da selecção natural, operando sobre uma fonte de variação genética como a
mutação genética. Eis Dawkins:
“Apesar das aparências em contrário, o único relojoeiro na
natureza é as forças cegas da física, ainda que aplicadas de uma maneira muito
especial. Um verdadeiro relojoeiro é dotado de antevisão: concebe as suas
engrenagens e molas, e planeia as suas interconexões, tendo em mente um
propósito futuro. A selecção natural, e o processo automático cego,
inconsciente, que Darwin descobriu, e que sabemos hoje ser a explicação da
existência e da forma aparentemente dotada de propósito de toda a vida, não tem
em mente qualquer propósito. Não tem mente e não tem seja o que for em mente.
Não planeia em função do futuro. Não tem qualquer visão, antevisão, não vê
coisa alguma. Se podemos dizer que desempenha o papel de relojoeiro na
natureza, é o relojoeiro cego.” (Dawkins 1986, 5)
Outros autores fazem notar que este suposto conflito está
longe de ser óbvio. A característica central da doutrina moderna da evolução é
que a força motriz do processo é a selecção natural, peneirando uma forma de
variação genética, sendo a mais popular a mutação genética aleatória. Não faz
parte da teoria a afirmação de que estas mutações ocorrem apenas ao acaso no
sentido em que esse termo sugere que não têm causa; são aleatórias apenas no
sentido em que não emergem do plano arquitectónico das criaturas que as sofrem,
e não ocorrem para melhorar a capacidade reprodutiva do organismo. Eis Ernst
Mayr, o decano da biologia do pós-guerra: “Quando se afirma que a mutação ou
variação é aleatória, isto quer simplesmente dizer que não há qualquer
correlação entre a produção de novos genótipos e as necessidades adaptativas de
um organismo no meio ambiente em causa” (Mayr 1998, 98). Sendo assim, a
evolução, tal como é actualmente formulada e entendida, é perfeitamente
compatível com um deus que orquestre e supervisione todo o processo; na
verdade, é perfeitamente compatível com essa teoria que Deus cause as
mutações genéticas que são peneiradas pela selecção natural. Quem defende que a
evolução mostra que a humanidade e as outras coisas vivas não foram concebidas,
defendem os seus oponentes, confundem uma interpretação naturalista da teoria
científica com a própria teoria. A afirmação de que a evolução demonstra que os
seres humanos e as outras criaturas vivas não foram concebidas, contra todas as
aparências, não faz parte nem é uma consequência da teoria científica, mas
antes um acrescento metafísico ou teológico (van Inwagen 2003).6
Uma segunda área de alegado conflito tem a ver com a acção
divina no mundo. Segundo a religião teísta clássica, Deus criou o mundo; também
o sustém e preserva, mantendo-o em existência. Sem a sua actividade de
preservação, o mundo desapareceria como a chama de uma vela ao vento. Assim, há
criação e preservação; mas, afirmam as religiões teístas clássicas, há também
acção divinaespecial, acção que vai além da criação e da preservação. Há
milagres relatados tanto na Bíblia judaica como na cristã: a separação das
águas do Mar Vermelho, por exemplo, assim como Jesus caminhando sobre as águas,
o fornecimento de alimento a cinco mil pessoas, e o renascimento dos mortos. Os
milagres são igualmente relatados no Alcorão. Muitos crentes não pensam que
estas acções divinas especiais se restringem aos tempos bíblicos: ainda hoje
Deus responde às orações e efectua curas milagrosas. Além disso, segundo o modo
cristão de pensar, Deus opera nos corações e espíritos dos seus filhos, de modo
a produzir a fé; Tomás de Aquino chamou a esta actividade divina “o incitamento
interno do Espírito Santo” e João Calvino chamou-lhe “o testemunho interno do
Espírito Santo.” Todos estes seriam exemplos de acção divina especial.
Ora, há quem veja aqui um conflito com a ciência moderna.
Entre esses autores conta-se Langdon Gilkey:
“[...] A teologia contemporânea não espera, nem fala, de
acontecimentos divinos assombrosos à superfície da vida natural e histórica. O
nexo causal no espaço e no tempo que a ciência e filosofia do Iluminismo
introduziram na mentalidade ocidental [...] é também pressuposto pelos teólogos
e estudiosos modernos; uma vez que participam no mundo moderno da ciência,
tanto intelectual como existencialmente, dificilmente poderiam fazer outra
coisa. Ora, este pressuposto de uma ordem causal entre os acontecimentos
fenoménicos, e portanto da autoridade da interpretação científica dos
acontecimentos observáveis, faz uma grande diferença no que respeita à validade
que se atribui às narrativas bíblicas, e portanto ao modo como se entende o seu
significado. Subitamente, uma vasta panóplia de feitos divinos e acontecimentos
registados na escritura não são já encarados como se tivessem efectivamente
acontecido [...] Seja o que for que os hebreus acreditavam, nós acreditamos que
as pessoas bíblicas viviam no mesmo contínuo causal do espaço e do tempo em que
nós vivemos, e portanto um contínuo em que não ocorrem quaisquer prodígios
divinos nem se ouve quaisquer vozes divinas.” (Gilkey 1983, 31)
Claro que muitos filósofos e cientistas concordariam. O
problema é, supostamente, a acção especialde Deus no mundo; não há
qualquer problema particular no que respeita à criação e preservação, mas a
acção divina para lá disso é largamente considerada incompatível com a ciência
moderna. Onde se considera exactamente que surge a incompatibilidade? Ao que
parece, a ideia é que a actividade divina especial seria incompatível com as
leis da natureza que a ciência põe a descoberto. Eis o distinto biólogo H.
Allen Orr:
“Não que algumas facções de uma religião invoquem milagres:
muitas facções de muitas religiões o fazem. (Afinal, Moisés separou as águas e
Krishna curou os doentes.) Concordo, é claro, que nenhum cientista sensato pode
tolerar tais excepções no que respeita às leis da natureza.” (Orr, 2004)
Ora, Gilkey, como outros autores, pensa aparentemente em
termos de uma mundividêncianewtoniana, segundo a qual o universo é como
uma máquina gigantesca que funciona segundo as leis postas a nu pela ciência.
Mas isto não é suficiente para a teologia do afastamento e da não-intervenção
destes teólogos. Afinal de contas, o próprio Newton, supostamente, aceitava a
mundividência newtoniana, mas propôs que Deus ajustava periodicamente as
órbitas planetárias, que sem isso, segundo os seus cálculos, dariam
gradualmente para o torto. O que Gilkey e os seus amigos acrescentam aqui, aparentemente,
é o determinismo: a ideia de que as leis da natureza, juntamente com
o estado do universo em qualquer momento dado, implicam o estado do universo em
qualquer outro momento. A fonte clássica aqui é Pierre Laplace:
“Devemos encarar o estado presente do universo como o efeito
do seu estado anterior e como a causa do que se lhe seguirá. Dado, por um
instante, um espírito que pudesse compreender todas as forças que animam a
natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem — um espírito
suficientemente vasto para analisar estes dados — esse espírito abrangeria na
mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e do menor dos
átomos; para ele, nada seria incerto e o futuro, como o passado, estaria presente
aos seus olhos.” (Laplace 1796)
É a mundividência de Laplace que aparentemente anima
Gilkey, et al. Vale a pena fazer notar, contudo, que o determinismo e a
mundividência laplaciana não se seguem da ciência clássica. Isto porque as
grandes leis da conservação deduzidas das leis de Newton são formuladas para
sistemasfechados ou isolados. Eis Sears e Zemansky (1963):
“O princípio da conservação da energia afirma que a energia
interna de um sistema isolado permanece constante. Esta é a formulação mais
geral do princípio da conservação da energia.” (p. 415)
As leis de Newton (tal como a posterior física da
electricidade e do magnetismo de Maxwell) aplicam-se a sistemas isolados ou fechados; descrevem
como o mundo funciona desde que o mundo seja um sistema fechado (isolado),
não estando sujeito a qualquer influência causal externa. Mas não faz
parte da mecânica newtoniana nem da ciência clássica em geral a declaração de
que o universo material é realmente um sistema fechado. (Como poderia uma coisa
dessas ser verificada experimentalmente?) Logo, nada há na ciência clássica
(pelo menos nesta área) que seja incompatível com Deus mudar a velocidade ou
direcção de uma partícula, ou de todo um sistema de partículas (ou, já agora,
com a criação ex nihilo de um cavalo adulto). A energia, a força
cinética e coisas do género conservam-se num sistema fechado; mas a tese de que
o universo material é de facto um sistema fechado não faz parte da física
clássica; é um acrescento metafísico ou teológico. Logo, não há conflito entre
a física clássica e a acção divina especial no mundo.
Esta imagem clássica, laplaciana, foi, evidentemente,
ultrapassada pelo desenvolvimento da mecânica quântica, que começou nos
primeiros pares de décadas do séc. XX. Segundo a mecânica quântica, associado a
qualquer sistema físico, um sistema de partículas, por exemplo, há uma função
de onda cuja evolução ao longo do tempo é regida pela equação de Schrödinger
para esse sistema. Ora, o interessante no que respeita à mecânica quântica é
que, ao contrário da mecânica clássica, não especifica nem prevê uma
configuração única para este sistema de partículas num momento futuro do
tempo, t. A função de onda atribui um valor em t a cada uma
das configurações possivelmente resultantes das condições iniciais; pela
aplicação da regra de Born a esses valores, obtemos uma atribuição de
probabilidades a cada uma dessas possíveis configurações em t. Assim, não
nos é dito que configuração irá de facto resultar (dadas as condições iniciais)
quando o sistema é medido em t; ao invés, é-nos dada uma distribuição de
probabilidades para os muitos resultados possíveis. É claro que os milagres (a
separação das águas, o renascimento dos mortos, etc.) não são incompatíveis com
estas atribuições. (Sem dúvida que a tais acontecimentos seriam atribuídas
probabilidades muito baixas; mas é claro que não precisamos da mecânica
quântica para saber que tais acontecimentos são improváveis.) Além disso, em
interpretações em termos de colapso, como as de Ghirardi, Rimini e Weber, há
muito espaço para a actividade divina. Na verdade, Deus pode ser afinal a causa
dos colapsos, e do modo como ocorrem (i.e., sendo P a possibilidade
que é efectivada em t, pode ser Deus a causa de P se efectivar
em t). (Isto poderia talvez ser visto como um meio caminho entre o
ocasionalismo e a causalidade secundária.) Com o advento da mecânica quântica,
portanto, parece haver ainda menos razão para ver a acção divina especial no
mundo como uma coisa que de algum modo é incompatível com a ciência.
Contudo, muitos autores inteiramente cientes da revolução da
mecânica quântica vêem mesmo assim um problema na acção divina especial. Por
exemplo, há o “Divine Action Project” (Wildman 1988-2003, 31-75), uma série de
conferências e publicações com quinze anos que começou em 1988. Até agora,
estas conferências resultaram em seis volumes de ensaios, envolvendo pelo menos
cinquenta ou mais autores de vários campos da ciência, juntamente com filósofos
e teólogos, incluindo muitos dos mais proeminentes autores da área. A maior
parte destes autores consideram problemática a acção divina especial. Isto
porque crêem que uma explicação satisfatória da acção de Deus no mundo teria de
ser não-intervencionista, como Wildman afirma. Eis Arthur Peacocke,
comentando uma certa proposta de acção divina:
“Deus teria de ser concebido como alguém que efectivamente
manipula micro-acontecimentos (aos níveis, atómico, molecular e, segundo alguns
autores, quântico) nestas flutuações iniciais do mundo natural para produzir os
resultados a nível macroscópico que Deus quer. Mas tal concepção da acção de
Deus [...] não seria então diferente em princípio da intervenção de
Deus na ordem da natureza, com todos os problemas que isso evoca com respeito a
uma crença racionalmente coerente em Deus como o criador dessa ordem.”
(Peacocke 2004)
O projecto é assim, aparentemente, desenvolver uma concepção
da acção divina especial (acção para lá da criação e da preservação) que não
envolva intervenção. Mas o que seria a intervenção na imagem da
mecânica quântica? Não é fácil dizer. Na verdade, não é fácil ver como a
intervenção poderia ser diferente da acção divina para lá da criação e da
preservação. Contudo, se não há qualquer diferença entre elas, a acção divina
especial seria apenas intervenção, caso em que o projecto de desenvolver uma
concepção da acção divina especial que não envolva intervenção não é
promissora.
Mesmo assim, uma terceira área de alegado conflito entre a
crença religiosa e a ciência tem a ver com as diferentes atitudes epistémicas
associadas a cada uma delas. Eis, por exemplo, John Worrall:
“A ciência, ou antes, a atitude científica, é incompatível
com a crença religiosa. A ciência e a religião estão num conflito
irreconciliável [...] Não há maneira de ter uma mentalidade apropriadamente
científica e ser um verdadeiro crente religioso.” (Worrall 2004, p.
60).
Na ciência, a atitude epistémica dominante (segundo esta
tese) é a investigação empírica crítica, propondo teorias que são sustentadas
hipotética e temporariamente; estamos sempre dispostos a abandonar uma teoria a
favor de uma sucessora mais satisfatória. Na crença religiosa (e.g., cristã), a
atitude epistémica da fé desempenha um papel importante, uma atitude
que difere tanto quanto à fonte da crença em questão, como na disponibilidade
para a abandonar.
Outros autores (Ratzsch, 2004), contudo, fazem notar que não
há aqui obviamente um conflito. É claro que essas duas atitudes são diferentes, e
talvez não possam ser assumidas simultaneamente com respeito à mesma
proposição. Mas mostra isso um conflito entre a ciência e a crença
religiosa? Talvez alguns modos de formar crenças sejam apropriados numa área e
outros modos noutras áreas. Para que tenhamos um conflito, temos de acrescentar
que a atitude epistémica científica é a única apropriada a qualquer área
de actividade cognitiva. Esta tese, contudo, não é em si parte da
atitude científica; é uma declaração epistemológica, a favor da qual se exige
argumentação substancial (mas que até agora não é visível). Além disso, não
parece que os próprios cientistas assumam a atitude epistémica científica
(acima caracterizada) com respeito a tudo o que acreditam, ou mesmo
com respeito a tudo o que acreditam como cientistas. Assim, é comum que os
cientistas acreditem que houve passado, e na verdade dizem-nos muitas vezes há
quanto tempo a Terra, ou a nossa galáxia, ou até o universo inteiro, se formou.
Os cientistas raramente sustentam esta crença — que houve passado — em
resultado da investigação empírica; nem comummente a sustentam desse modo
hipotético, crítico, procurando sempre uma alternativa melhor.
Consequentemente, nestas áreas é difícil encontrar conflito
entre a crença religiosa teísta e a ciência contemporânea.
Parece haver outras áreas da ciência, contudo, que produzem
conflito. Primeiro, há a disciplina relativamente nova mas em rápido
crescimento da psicologia evolutiva. A alma e coração deste projecto é o
esforço para explicar traços distintamente humanos — a nossa arte, humor,
ludicidade, poesia, sentido de aventura, gosto por histórias, a nossa música, a
nossa moralidade e a nossa religião — em termos da nossa origem e história
evolutiva. E aqui encontramos realmente teorias incompatíveis com a crença
religiosa. Um tópico importante nesta área tem sido o comportamento
altruísta — comportamento que promove a boa adaptação reprodutiva de outra
pessoa às custas da boa adaptação reprodutiva do próprio altruísta. Como
explicar que haja pessoas como os missionários e a Madre Teresa, pessoas que
dedicam as suas vidas ao serviço dos outros, dando pouca atenção às suas
próprias perspectivas reprodutivas? Herbert Simon procura explicar o altruísmo
de um ponto de vista evolutivo, em termos de dois mecanismos, a docilidade e a
racionalidade limitada:
“As pessoas dóceis tendem a aprender e acreditar no que
pensam que os outros membros da sociedade querem que elas aprendam e creiam.
Assim, o conteúdo do que aprendem não será completamente analisado quanto ao
contributo dado à boa adaptação reprodutiva.
Devido à racionalidade de grupo, o indivíduo dócil será
muitas vezes incapaz de distinguir entre os comportamentos socialmente
prescritos que contribuem para a boa adaptação e o comportamento altruísta
[i.e., o comportamento socialmente prescrito que não contribui para a boa
adaptação]. De facto, a docilidade irá reduzir a inclinação para avaliar de
modo independente quão contribui um comportamento para a boa adaptação [...].
Em virtude da racionalidade de grupo, a pessoa dócil não pode adquirir a
aprendizagem pessoalmente vantajosa que fornece o incremento de boa adaptação
sem adquirir também os comportamentos altruístas que têm como custo a sua
diminuição.” (Simon 1990, 3, 4)
A teoria de Simon foi cuidadosamente trabalhada e bem
desenvolvida, sendo de considerável interesse; é também incompatível com a
crença religiosa. Segundo esta teoria, a explicação do comportamento altruísta
consiste em não se ver que o comportamento em questão compromete a boa
adaptação evolutiva. Assim, segundo a teoria de Simon, a resposta à pergunta
“Por que razão se comporta a Madre Teresa de um modo que compromete a sua boa
adaptação evolutiva?” é “Devido à racionalidade de grupo, ela é incapaz de ver
que o seu modo de se comportar compromete a sua boa adaptação.” De uma
perspectiva cristã, esta não é de modo algum a resposta correcta, que seria
algo como “Ela quer seguir o exemplo de Jesus, fazendo o que pode para ajudar
os pobres e doentes.”
Outro exemplo desta área é fornecido por muitas teorias da
religião e da crença religiosa. Segundo algumas destas teorias, a crença
religiosa é falsa, mas adaptativa; segundo outras, é falsa e contra-adaptativa.
Um exemplo do primeiro grupo seria a teoria proposta por David Sloan Wilson,
que afirma que a religião é uma adaptação de grupo: “Muitas características da
religião, como a natureza dos agentes sobrenaturais e as suas relações com os
seres humanos, podem ser explicadas como adaptações concebidas para permitir
que os grupos de seres humanos funcionem como unidades adaptativas” (Wilson
2002, p. 51). A crença religiosa, afirma, é fictícia, mas adaptativa a nível de
grupo: promove a cooperação, o respeito mútuo e a solidariedade, permitindo
assim que o grupo se saia bem em competição com outros grupos.
Que a religião possa funcionar como uma adaptação de grupo
é, evidentemente, consistente com a crença teísta; e que dizer do pedaço sobre
a crença religiosa — a crença teísta, por exemplo — ser fictícia? Como poderia
a tese de que a pessoa de Deus não existe fazer parte da ciência empírica? E
mesmo que o pudesse, a teoria de Wilson, ao que parece, estaria em terreno mais
sólido se esse acrescento teológico facilmente eliminável fosse excluído. O que
não é tão fácil de excluir é a tese de que a crença religiosa (ao contrário da
memória, crenças perceptivas, intuição racional) é produzida por faculdades
cognitivas ou processos que não visam a produção de crenças verdadeiras.
Segundo Wilson, estes processos ou faculdades têm uma função que lhes foi
conferida pela evolução; mas essa função não é a de produzir crenças
verdadeiras. É antes a função de produzir crenças que promovam a cooperação e a
solidariedade; em última análise, a sua função é fornecer crenças que são
adaptativas, i.e., promovem a boa adaptação reprodutiva.
Neste ponto, uma comparação com a perspectiva de Sigmund
Freud da crença teísta pode ser esclarecedor. Freud sustenta que a crença
teísta é uma ilusão. Isto não significa que seja falsa (apesar de
Freud pensar que é falsa); o que significa é que a crença teísta é
produzida por um processo cognitivo (sonhar alto) que não se “orienta pela
realidade”; o seu propósito não é a produção da crença verdadeira, mas (neste
caso) uma crença que permita ao crente evitar a depressão e apatia que se
instalaria se ele visse claramente a miserável chocante condição em que os
seres humanos se encontram. A perspectiva de Wilson é assim como a de Freud,
uma vez que também ele propõe que a crença teísta é produzida por faculdades
cognitivas que não se orientam pela realidade. Ao passo que Freud assume uma
perspectiva pessimista da crença teísta, Wilson é muito mais elogioso:
“Em primeiro lugar, muitas crenças religiosas não estão
separadas da realidade [...] Ao invés, estão intimamente conectadas com a
realidade, motivando comportamentos que são adaptativos no mundo real — um
feito espantoso quando nos damos conta da complexidade exigida para ficarmos
conectados neste sentido prático [...]. A adaptação é o padrão máximo contra o
qual a racionalidade tem de ser ajuizada, juntamente com todas as outras formas
de pensamento. Os biólogos evolucionistas devem entender este aspecto
especialmente bem porque estão cientes de que uma mente bem adaptada é em
última análise um órgão de sobrevivência e reprodução.” (Wilson 2002, p. 228)
Apesar de Wilson dirigir palavras simpáticas à religião, a
sua tese de que a crença religiosa não visa a verdade é incompatível com a
crença religiosa teísta. Segundo o cristianismo, por exemplo, a fé, incluindo a
crença nos aspectos essenciais da fé cristã, é uma dádiva divina; e o processo
de a produzir no crente (o incitamento interno do Espírito Santo, segundo Tomás
de Aquino, o testemunho interno do Espírito Santo, segundo João Calvino) visa
realmente a verdade e tem como função a produção de crença verdadeira.
Assim, há um conflito entre a ciência e a religião. O que o
explica? Várias coisas, sem dúvida; mas parte da explicação encontra-se
no naturalismo metodológico, uma restrição muitíssimo aceite na
ciência. Segundo o naturalismo metodológico (NM), ao fazer ciência temos de
proceder “como se Deus não fosse dado,” para usar as palavras de Hugo Grócio. O
que significa isto exactamente? Há várias sugestões; eis uma delas. Segundo o
NM, 1) o conjunto de dados (o modelo) de uma teoria apropriadamente
científica não pode referir Deus ou outros agentes sobrenaturais (anjos,
demónios), ou empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação
(divina). Assim, os dados para uma teoria não incluiriam, por exemplo, a
proposição de que houve recentemente um surto de possessão demoníaca em
Washington, D. C. 2) Uma teoria científica apropriada não pode
referir Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, nem empregar o que
sabemos ou pensamos saber por meio da revelação. Assim, se o modelo contiver a
proposição de que houve um surto de comportamentos bizarros e irracionais em
Washington, D. C., não seria apropriado propor uma teoria que envolvesse a
possessão demoníaca para o explicar. 3) Note-se, para começar, que a
probabilidade ou plausibilidade de possíveis teorias e a sua capacidade para
explicar os dados, assim como as suas implicações empíricas, é sempre relativa
a uma série de informações de fundo ou umabase epistémica. A
terceira restrição é, então, que a base epistémica de uma teoria
apropriadamente científica não pode incluir proposições que impliquem
obviamente7 a existência de Deus ou quaisquer outros agentes
sobrenaturais, ou proposições que sabemos ou pensamos que sabemos por meio da
revelação. Pois considere-se alguém que de facto aceita as linhas principais de
uma das religiões teístas, e trabalha na área da psicologia evolucionista. Sem
dúvida que irá honrar o NM como restrição à sua actividade científica. Se o
fizer, para todos os propósitos científicos irá eliminar do seu corpo de dados
as proposições que impliquem obviamente a existência de Deus ou de outros seres
sobrenaturais, tal como o que ela sabe ou pensa que sabe por meio da fé ou da
revelação. Mas então ela poderá muito bem produzir teorias do género que temos
vindo a apontar, teorias incompatíveis com a religião teísta.
Uma área bastante diferente, mas com a mesma dialéctica: a
crítica bíblica histórica (CBH). A CBH é diferente do comentário bíblico
tradicional. O praticante deste último pressupõe que a Bíblia é a palavra de
Deus, e tenta pôr a nu o significado do que é ensinado em várias partes da
Bíblia. O praticante da CBH, por outro lado, põe especificamente entre
parêntesis a crença de que a Bíblia é revelação divina, e tenciona ao invés
estudá-la cientificamente. Assim, o falecido Raymond Brown, um
estudioso católico das escrituras muitíssimo respeitado, crê que a CBH é
“crítica bíblica científica” (Brown 1973, p. 6); dá origem a “resultados
factuais” (p. 9); pretende que os seus próprios contributos sejam
“cientificamente respeitáveis” (p. 11); e os praticantes da CBH investigam as
escrituras com “exactidão científica” (pp. 18-19); veja- se também Meier 1991,
p. 6. Estudar a Bíblia cientificamente, portanto, é estudá-la de um modo que
obedeça às restrições do NM. (Veja-se também Sanders 1985, p. 5; Levenson 1993,
p. 109; e Lindars 1986, p. 91).
Tem havido, como seria de esperar, uma tensão considerável
entre a CBH, entendida deste modo, e os cristãos tradicionais, remontando pelo
menos a David Strauss, em 1835: “Não, se fôssemos cândidos connosco mesmos, o
que era história sagrada para o crente cristão é, para a porção iluminada dos
nossos contemporâneos, apenas fábula.” Quanto a tensões contemporâneas, segundo
Luke Timothy Johnson:
“Os investigadores do Jesus histórico insistem que temos de
encontrar o “Jesus real” nos factos da sua vida antes da sua morte. A
ressurreição é vista, quando chega a ser tida em consideração, em termos de uma
experiência visionária, ou como uma continuação de uma “emancipação” que
começou antes da morte de Jesus. Explícita ou não, a premissa operativa é que
não há qualquer “Jesus real” depois da sua morte.” (Johnson 1997, p. 144)
E, segundo Van Harvey, “No que respeita ao historiador
bíblico, [...] não há praticamente qualquer crença tradicional popular sobre
Jesus que não seja encarada com considerável cepticismo” (Harvey 1986, p. 193).
Uma característica absolutamente central da CBH é este
esforço de ser científica. Claro que podemos perguntar-nos se a CBH, ou
qualquer estudo histórico, é realmente ciência; os seus defensores dizem que o
é, mas terão razão? Dada a dificuldade do problema da demarcação, contudo, não
é provavelmente avisado transformar esta pergunta numa objecção. (Além disso,
ainda que os estudos históricos deste tipo não sejam precisamente ciência, são
certamente muitoparecidos à ciência.) E na medida em que a CBH exige a
conformidade ao NM, quem a pratica põe entre parêntesis ou suspende ou põe de
lado quaisquer perspectivas teológicas, ou o que é conhecido por revelação.8 Tal
como acontece com a psicologia evolucionista, portanto, quem trabalha na CBH
pode de facto aceitar uma ou outra religião teísta, mas no seu trabalho como
praticante de CBH, chegar a conclusões incompatíveis com a sua crença
religiosa. Até agora, portanto, temos aqui a mesma dialéctica que vimos na
psicologia evolucionista: teorias incompatíveis com a religião teísta que
resultam (pelo menos em parte) do NM.
Pelo menos nestas duas áreas, portanto, há um conflito entre
as teorias científicas e a crença religiosa. Num aspecto muitíssimo importante,
contudo, este conflito é superficial. Isto porque as teorias e teses da
psicologia evolucionista e a CBH não precisam de refutar, nem sequer
parcialmente,9 aqueles elementos da crença religiosa com os quais são
incompatíveis — ainda que o teísmo esteja obrigado a levar a ciência muito a
sério e ainda que se conceda que as teorias em questão constituem boa ciência.
E isto precisamente porque o NM é encarado como uma restrição à
actividade científica. Podemos ver isto como se segue. Como já foi sugerido, a
investigação científica é sempre conduzida contra um pano de fundo de um corpo
de dados, um corpo de conhecimento ou crença de fundo. Uma parte importante do
NM, além disso, é que este corpo de dados não pode conter proposições que
impliquem obviamente a existência de seres sobrenaturais, ou proposições que
são aceites por meio da fé. Segue-se que o corpo de dados de um partidário de
uma religião teísta irá conter o corpo científico de dados como uma parte
própria; irá incluir todas as proposições que encontramos no corpo
científico de dados, além de outros — talvez os que são específicos da crença
cristã. Suponha-se agora que uma dada teoria — a teoria do altruísmo de Simon,
ou a teoria da religião de Wilson, ou uma explicação minimalista da vida e
actividade de Jesus — é de facto ciência apropriada, e que é de facto a
resposta teórica mais plausível e cientificamente mais satisfatória aos dados,
dado o CCD, o corpo científico de dados. Isto significa que do ponto de vista
do CCD, juntamente com os dados actuais, essa teoria é o melhor ou mais
plausível resultado. Mesmo assim, isso não dá automaticamente a um crente algo
que refuta aquelas suas crenças com as quais a teoria é incompatível. Isto
porque o CCD é apenas uma parte do seu corpo de dados. E pode muito bem
acontecer que uma proposição P seja a resposta plausível, dada
uma parte da minha base de dados (juntamente com os dados actuais),
que P seja incompatível com uma das minhas crenças, e que P não
me dê algo que refute essa crença.
Por exemplo, suponha-se que lhe digo que o vi ontem à tarde
no centro comercial. Então, com respeito a parte do seu corpo total de dados —
a parte que inclui o seu conhecimento de que eu lhe disse que o vi lá,
juntamente com o seu conhecimento de que eu tenho uma visão decente e sou, de
ordinário, confiável, etc. — a coisa certa a pensar é que você esteve no centro
comercial. Contudo, suponhamos, você sabe perfeitamente que não esteve
lá; lembra-se de ter estado toda a tarde em casa, pensando sobre o naturalismo
metodológico. Aqui, a coisa certa a pensar da perspectiva de uma parte própria
do seu corpo de dados é que você esteve no centro comercial; mas isto não lhe
fornece algo que refute a sua crença de que não esteve lá. Outro exemplo:
podemos imaginar um grupo renegado de físicos extravagantes que se propõem
reconstruir a física, recusando-se a usar crenças de memória, ou, se
isso for demasiado fantasioso, memórias com mais de um minuto. Talvez algo se
possa fazer nesta direcção, mas seria uma coisa pobre, insignificante, mutilada
e fútil. E agora suponha-se que a melhor teoria, do ponto de vista deste corpo
limitado de dados, é inconsistente com a relatividade geral. Deve isso
preocupar os físicos mais tradicionais que usam o que sabem por meio da
memória, assim como o que os físicos renegados usam? Penso que não. Esta física
mutilada dificilmente poderia pôr em questão a física mais ampla, e o facto de,
ao partir de uma parte própria do corpo científico de dados, algo inconsistente
com a teoria da relatividade constituir a melhor teoria — esse facto
dificilmente daria aos físicos mais tradicionais algo que refutasse a teoria da
relatividade.
O mesmo ocorre no caso em discussão. O cristão tradicional
pensa que sabe pela fé que Jesus era divino e que ressuscitou dos
mortos. Mas então não tem de ficar impressionado pelo facto de estas
proposições não serem especialmente objecto de prova com base no corpo de dados
a que a CBH se limita — i.e., um corpo de dados restringido pelo NM e que
portanto elimina qualquer conhecimento ou crença que dependa da fé. As
descobertas da CBH, se é que o são, não têm de lhe dar algo que refute as suas
crenças com as quais são incompatíveis. O que está em causa não é que a CBH, a
psicologia evolucionista e outras teorias científicas não podem em princípio
fornecer algo que refute a crença cristã;10 o que está em causa é apenas o
aparecimento de teorias, nessas áreas, incompatíveis com a crença cristã não
produz automaticamente algo que a refute. Tudo depende dos dados particulares
aduzidos no caso em questão, e as implicações desses dados dado o corpo
completo de dados do crente. No caso em questão, por exemplo, pode ser que,
dado o CCD e o corpo relevante de dados, é improvável que Jesus tenha renascido
dos mortos. Mas dado um corpo de dados que inclua não apenas o CCD mas também a
crença em Deus, juntamente com as crenças especificamente cristãs de que Jesus
é a segunda pessoa da Trindade encarnada, e que o Novo Testamento é uma fonte
de informação fidedigna nestas questões — dadas estas coisas, a proposição de
que Jesus renasceu dos mortos pode não ser improvável. Considerações
semelhantes se poderiam fazer, é claro, para outras religiões teístas, e com
respeito a outras supostas refutações científicas.
Uma pessoa poderia protestar que isto parece uma receita
para a irresponsabilidade intelectual, para nos agarrarmos a crenças face aos
dados. Não poderá um crente dizer sempre algo como isto, seja qual for a
refutação que se apresente? “Talvez B (a crença a refutar) seja
improvável com respeito a uma parte do que acredito,” poderá o crente dizer,
“mas certamente não é improvável com respeito à totalidade do que acredito, totalidade
essa que inclui, é claro, a própria B.” É óbvio que isto não pode estar
certo; se estivesse, tudo o que hipoteticamente poderia refutar algo seria
posto de lado deste modo, e a refutação seria impossível. Mas a refutação não é
impossível; acontece por vezes que adquirimos algo que refuta uma crença B, ao
descobrir que B é improvável com respeito a um dado subconjunto
próprio do nosso corpo de dados. Segundo o livro de Isaías (41:9), Deus afirma
“fui buscar-te aos confins da Terra,
chamei-te dos cantos mais remotos. Eu disse-te: Tu é que és
o meu servo. Foi a ti que escolhi e não te rejeitarei.” Uma pessoa poderia
acreditar que R, a proposição de que a Terra é um sólido rectangular, com
cantos, na base deste texto; terá algo que refuta esta crença quando for
confrontada com os dados científicos — fotografias da Terra vista do espaço,
por exemplo — que a contrariam. Em qualquer caso, terá algo que refuta R se
o resto da sua estrutura noética for como a nossa. O mesmo acontece com alguém
que sustente crenças pré-copernicianas com base em textos como “A Terra
permanece imóvel; não será deslocada” (Salmos 104:5). Por que há refutadores em
alguns casos, mas não noutros? O que faz a diferença?
Eis uma sugestão. Considere-se uma crença religiosa B,
incompatível com um resultado de uma teoria científica actual: B poderia
ser, por exemplo, a crença de que a Madre Teresa era perfeitamente racional ao
comportar-se daquele modo altruísta. Seja a teoria científica a explicação do
altruísmo de Herbert Simon, e seja CDC o corpo de dados do crente. A nossa
questão é se A, a crença de que a teoria de Simon é apropriadamente
ciência (e que implica a negação deB), refuta B. Acrescente-se A ao
corpo de dados de S; agora a questão correcta é, talvez, esta: é Bepistemicamente
improvável com respeito à conjunção de A com CDC? Claro que a
própria Bpoderia ser inicialmente um membro do CDC, caso em que não seria
certamente improvável com respeito a ele. Se isso fosse suficiente para A não
refutar B, contudo, nenhum membro do corpo de dados poderia alguma vez ser
refutado por uma nova descoberta; e isso não pode estar certo. Assim,
apague-se B do CDC. Chame-se ao resultado de apagar B do
corpo de dados de S “CDC reduzido com respeito a B” — “CDC-B”,
abreviando.11 E agora a sugestão — chamemos-lhe “o teste por redução da
refutação” — é que A refuta B apenas se B for
apropriadamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B.
Suponha-se que aplicamos este teste à crença B de
que a Madre Teresa era racional ao comportar-se de modo altruísta, sendo A a
crença de que a teoria de Simon do altruísmo é boa ciência e é incompatível
com B; e suponhamos que S é um crente cristão. Para aplicar
o teste por redução temos de perguntar se B é improvável com respeito
à conjunção de A com CDC-B. A resposta, penso, é que B não
é improvável com respeito a essa conjunção. Pois CDC-B inclui os dados
empíricos, seja eles quais forem exactamente, usados por Simon, mas também a
proposição de que nós, seres humanos, fomos criados por Deus e fomos criados à
sua imagem, juntamente com o resto das ideias principais da história cristã.
Com respeito à conjunção de A com esse corpo de
proposições, não é provável que se a Madre Teresa tivesse sido mais racional,
mais esperta, teria agido para aumentar a sua boa adaptação reprodutiva, em vez
de viver de modo altruísta. Logo, no proposto teste por redução, o facto de que
a teoria de Simon é boa ciência, e é mais provável do que improvável com
respeito ao corpo científico de dados — esse facto não dá a S algo
que refute o que ele pensa sobre a Madre Teresa.
Considere-se, por outro lado, a crença B* de que a
Terra tem cantos e arestas, e os dados fotográficos contra essa crença: aqui,
plausivelmente, o teste por redução tem como resultado que os segundos
refutam B*. (É verdade que um cristão poderia pensar que a Bíblia é
infalível, dado Deus ser o seu autor último; mas é claro que isso deixa em
aberto a questão de saber o que visa Deus ensinar-nos na passagem em questão.)
Assim, o teste por redução dá resultados sensatos nestes dois casos. Contudo,
não pode estar certo em geral — mais exactamente, está certo em geral apenas
aceitando um pressuposto muito importante, que o crente provavelmente
rejeitará. Pois poderá acontecer, obviamente, que B tenha bastante
aval em si mesma, aval que não obtém dos outros membros do CDC ou, na verdade,
de quaisquer outras proposições. B pode ser básica com
respeito ao aval; B pode obter aval de uma fonte diferente de
qualquer fonte envolvida na teoria científica com a qual é incompatível. Se
isso acontecer, o facto de B ser improvável com respeito a CDC-B não
mostra que S tem algo que refuta B pelo facto de B ser
improvável com respeito a CDC-B juntamente com a A relevante.
Como exemplo ilustrativo, você está a ser julgado por um
dado crime; os dados contra si são fortes, e você é condenado. Contudo, você
lembra-se muito claramente que no momento em que o crime ocorreu estava a
passear sozinho no bosque. A sua crença de que estava a caminhar no bosque não
se baseia em argumentos ou inferências de outras proposições. (Você não repara,
e.g., que se sente um pouco cansado e que os seus sapatos têm lama, e que está
um mapa da área no bolso do seu casaco, concluindo que a melhor explicação
destes fenómenos é que esteve a caminhar no bosque.) Assim, considere-se o seu
corpo de crenças, SCC, menos P, a proposição de que não cometeu o crime e
estava a caminhar no bosque quando este foi cometido. Com respeito a SCC-P, P é
epistemicamente improvável; afinal, você tem os mesmos dados do que o júri a
favor de ¬P, e o júri está muito apropriadamente (ainda que erradamente)
convencido de que você cometeu o crime. Contudo, você não tem aqui, certamente,
algo que refuta a sua crença de que está inocente. A razão, é claro, é
que P é para si uma fonte de aval independente do resto das suas
crenças: vocêlembra-se disso. No caso destes, ter ou não algo que refute a
crença P em questão irá depender, por um lado, da força do aval
intrínseco que tem P, e, por outro lado, da força dos dados
contra Pquanto a SCC-P. O aval intrínseco será muitas vezes mais forte.
O mesmo se aplica a crenças religiosas, se estas de facto
tiverem aval intrínseco. Se S tem uma crença religiosa B e
se B tiver aval do modo básico, então mesmo que a probabilidade
de B quanto a CDC-B juntamente com a A relevante seja
baixa, não se segue que A refuta B para S. Talvez
o teste por redução ofereça uma condição necessária para que A refute B para S; é
também suficiente apenas se as crenças religiosas não tiverem aval ou estatuto
epistémico positivo de um modo básico, e apenas se não adquirem aval ou
estatuto epistémico positivo de uma fonte além das que conferem esse estatuto
às crenças científicas. É por isso, em parte, que a questão mencionada na
secção 2 é importante.
Examinámos até agora o alegado conflito entre a crença
religiosa e a ciência, com respeito a várias áreas: evolução, acção divina no
mundo, a diferença entre a atitude científica e a religiosa, psicologia
evolucionista e CBH. Mas houve quem sugerisse um conflito entre a ciência e a
religião (ou entre a ciência e a quase-religião) de um género totalmente
diferente: entre o naturalismo e a ciência (Otte 2002; Plantinga
1993, 2002a; Rea 2002; Taylor 1963; há também sugestões disto em Nietzsche 2003
e no próprio Darwin 1887).
Ora bem, o naturalismo é muito diversificado. Primeiro, há a
perspectiva de que a natureza é tudo o que há; não há seres sobrenaturais.
Claro que isto é um pouco fraco como explicação do naturalismo; precisamos de
saber o que é a natureza, e como poderiam ser os alegados seres sobrenaturais.
Talvez um modo de proceder seja dizer que o naturalismo, concebido deste modo,
é a perspectiva de que não há uma pessoa como o Deus do teísmo, ou algo como
Deus (veja-se, por exemplo, Beilby 2002). Chame-se a isto “naturalismo1.” Outra
variedade de naturalismo, “naturalismo científico,” como lhe poderíamos chamar,
seria a tese de que não há entidades além das que são sancionadas pela ciência
actual (Kornblith 1994).12 Dado que a ciência actual não sanciona seres
sobrenaturais, o naturalismo científico implica o naturalismo1. Há também o que
poderíamos chamar “naturalismo epistemológico,” segundo o qual, grosso
modo, os métodos da ciência são os únicos métodos epistémicos apropriados
(Krikorian 1994). Com a ajuda de um par de premissas razoavelmente óbvias, o
naturalismo epistemológico implica também o naturalismo1, e eu irei usar
“naturalismo” para referir a disjunção das três versões de naturalismo
esboçadas. Os partidários do naturalismo, concebido deste modo, seriam (por
exemplo) Bertrand Russell (1957), Daniel Dennett (1995), Richard Dawkins
(1986), David Armstrong (1978) e muitos outros de quem por vezes se diz que
subscrevem “a mundividência científica.”
O naturalismo não é, presumivelmente, uma religião. Num
aspecto muito importante, contudo, é parecido a uma religião: pode-se dizer que
desempenha a função de uma religião. Há o domínio de questões profundamente
humanas a que uma religião tipicamente responde (veja-se acima, secção I): qual
é a natureza fundamental do universo: por exemplo, é a mente primordial, ou a
matéria (não mental)? O que há de mais real e básico na realidade, e que tipos
de entidades exibe? Qual é o lugar dos seres humanos no universo, e que relação
têm com o resto do mundo? Há perspectivas de uma vida depois da morte? Existe
pecado, ou algo a análogo ao pecado? Se sim, que perspectivas existem de o
combater ou ultrapassar? Onde temos de atentar para melhorar a condição humana?
Há realmente um summum bonum, um bem mais elevado para os seres
humanos, e se sim, o que é? Como uma religião típica, o naturalismo dá um
conjunto de respostas a estas e outras questões semelhantes. Podemos portanto
dizer que o naturalismo desempenha a função cognitiva de uma religião, e
portanto é sensato concebê-lo como uma quase-religião.
Acresce que muitos pensadores, remontando pelo menos a
Nietzsche (2003) e possivelmente a William Whewell (Curtis 1986), fizeram notar
uma implicação potencialmente preocupante da teoria da evolução. A preocupação
pode ser formulada como se segue. Segundo o darwinismo ortodoxo, o processo da
evolução é conduzido principalmente por dois mecanismos: mutação genética
aleatória e seleção natural. O primeiro é a fonte principal de variabilidade
genética; em virtude da segunda, uma mutação que resulte num traço
transmissível geneticamente e que aumente a boa adaptação irá provavelmente
espalhar-se por essa população e ser preservada como parte do genoma. São os
comportamentos e traços que aumentam a boa adaptação que são recompensados pela
seleção natural; o que é penalizado são traços e comportamentos que dificultam
a boa adaptação. Ao produzir as nossas faculdades cognitivas, a seleção
natural irá favorecer as faculdades e processos cognitivos que resultem em
comportamento adaptativo; não se importa nem um pouco com a crença verdadeira
(enquanto tal) nem com as faculdades cognitivas que conduzem de modo fidedigno
à crença verdadeira. Como afirmou o psicólogo evolucionista David Sloan Wilson,
“a mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e
reprodução” (Wilson 2002, 228). Se as nossas mentes servem para algo, não é a
produção de crenças verdadeiras, mas antes a produção de comportamento adaptativo:
que a nossa espécie tenha sobrevivido e evoluído garante, no máximo, que o
nosso comportamento é adaptativo; não garante, nem sequer torna provável, que
os nossos processos de produção de crenças sejam na sua maior parte fidedignos,
ou que as nossas crenças sejam na sua maior parte verdadeiras. Isto porque o
nosso comportamento poderia perfeitamente ser adaptativo, mas as nossas crenças
serem tão frequentemente falsas como verdadeiras. O próprio Darwin se preocupou
aparentemente com esta questão:
“Comigo, levanta-se sempre a dúvida horrível de as
convicções da mente humana, que foi desenvolvida a partir da mente dos animais
inferiores, terem ou não algum valor, ou serem realmente dignas de confiança.
Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se é que em tal mente há
quaisquer convicções?” (Darwin 1887)
Podemos formular brevemente a dúvida de Darwin como se
segue. Seja R a proposição de que as nossas faculdades cognitivas são
fidedignas, N a proposição de que o naturalismo é verdadeiro e E a
proposição de que nós e as nossas capacidades cognitivas surgimos dos processos
apontados pela teoria evolucionista contemporânea: qual é a probabilidade
condicional de R dado N&E? I.e., qual é o valor de P(R | N&E)?
Darwin receia que seja muito baixo.
Mas é claro que só a evolução natural que não seja guiada dá
origem a esta preocupação. Se a selecção natural for guiada e orquestrada pelo
Deus do teísmo, por exemplo, a preocupação desaparece; Deus usará todo o
processo, presumivelmente, para criar criaturas do género que quer, criaturas à
sua própria imagem, criaturas com faculdades cognitivas fidedignas. Assim, é a
evolução que não é guiada, e as crenças metafísicas que implicam a evolução que
não é guiada, que dão origem a esta preocupação quanto à fiabilidade das nossas
faculdades cognitivas. Ora, o naturalismo implica que a evolução, se ocorre,
não é realmente guiada. Mas então, segundo esta sugestão, é improvável que as
nossas faculdades cognitivas sejam fidedignas, dada a conjunção do naturalismo
com a proposição de que nós e as nossas faculdades cognitivas surgimos por meio
da seleção natural, peneirando a variação genética aleatória. Sendo assim,
quem crê nesta conjunção terá algo que refuta a proposição de que as nossas
faculdades são fidedignas — mas se isso for verdadeiro, terá também algo que
refuta qualquer crença produzida pelas suas faculdades cognitivas — incluindo,
é claro, a conjunção do naturalismo com a evolução. Assim se vê que essa
conjunção é auto-refutante. Se o for, contudo, tal conjunção não pode
racionalmente ser aceite, caso em que há um conflito entre o naturalismo e a
evolução, e portanto entre o naturalismo e a ciência.
Podemos formular esquematicamente o argumento como se segue:
P(R | N&E) é baixa.
Quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem
algo que refuta R.
Quem tem algo que refuta R tem algo que refuta
qualquer outra crença que tenha, incluindo a própria N&E.
Logo, quem aceitar N&E e vir que 1 é
verdadeira, tem algo que refuta N&E; logo, N&E não
pode ser racionalmente aceite.
Claro que esta é uma versão concisa e meramente esquemática
do argumento; não há aqui espaço para as necessárias qualificações.
A defesa de 1 seria algo como o seguinte. Primeiro, para
evitar a influência do nosso pressuposto natural de que as nossas faculdades
cognitivas são fidedignas, pensemos não sobre nós, mas sobre criaturas
hipotéticas muito parecidas connosco, existindo talvez noutra parte do
universo; e suponha-se que N e E são verdadeiras com
respeito a elas. De seguida, note-se que o naturalismo implica aparentemente o
materialismo (quanto aos seres humanos); a ciência actual não sustenta a
existência de almas imateriais ou mentes ou eus. Assim, considere-se que o
naturalismo inclui o materialismo. O que seria uma crença, deste
ponto de vista? Presumivelmente, algo como um acontecimento ou estrutura de
longo prazo no sistema nervoso — talvez um grupo estruturado de neurônios
conectados e relacionados de certos modos. Tal estrutura neuronal terá propriedades neurofisiológicas (“propriedades
NF”): propriedades que especificam o número de neurônios envolvidos, o modo
como estes neurónios estão conectados entre si e com outras estruturas (como
músculos, glândulas, órgãos dos sentidos, outros acontecimentos neuronais,
etc.), a cadência e intensidade médios dos disparos neuronais em várias partes
deste acontecimento, e os modos como estas cadências de disparos mudam ao longo
do tempo e em resposta aos dados de entrada de outras áreas. Se este
acontecimento for realmente uma crença, contudo, terá também conteúdo; será
a crença de que p, para uma dada proposição p — talvez a
proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia.
Qual é a relação entre as propriedades NF, por um lado, e as
propriedades do conteúdo — propriedades como ter como conteúdo a
proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia —, por outro?
Talvez a posição mais popular aqui seja o “materialismo não redutor” (MNR): as
propriedades do conteúdo são distintas mas são sobrevenientes relativamente
às propriedades NF.13A sobreveniência pode ser ou lógica, em termos latos, ou
nómica. Neste último caso, haveria leis psicofísicas relacionando as
propriedades NF com as propriedades do conteúdo: leis do géneroqualquer
estrutura com tais e tais propriedades NF terão tal e tal conteúdo. Estas
leis serão presumivelmente contingentes (no sentido lógico lato ou no sentido
metafísico). No primeiro caso, haverá também tais leis, mas serão necessárias e
não contingentes.
Ora, tome-se qualquer crença B da parte de um
membro dessa hipotética população: qual é a probabilidade (epistémica) de
que B seja verdadeira, dado N&E e o materialismo não
redutor — qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? O que
sabemos é que B tem um certo conteúdo (chamemos-lhe “C”), e (podemos
admitir ou conceder) ter B é adaptativo nas circunstâncias em que a
criatura se encontra. Qual é então a probabilidade de que C, o conteúdo
de B, seja verdadeiro? Bem, qual é a probabilidade de que a lei
psicofísica relevante L que liga as propriedades NF e as propriedades
do conteúdo produza uma proposição verdadeira como conteúdo neste
caso? Ter B é adaptativo, nas circunstâncias em que a criatura se
encontra; exibir as propriedades NF sobre as quais C sobrevém causa
comportamento adaptativo. Mas porquê pensar que o conteúdo conectado às
propriedades NF por L será verdadeiro nas circunstâncias desta
criatura? O que conta como adaptatividade são as propriedades NF e o
comportamento que estas causam; não importa se o conteúdo sobreveniente é
verdadeiro. As propriedades NF são de facto adaptativas; mas isso não fornece
qualquer razão, até agora, para pensar que o conteúdo sobreveniente é
verdadeiro. Ter B é adaptativo em virtude de causar comportamento
adaptativo, e não em virtude de ter um conteúdo verdadeiro. Claro que se o
teísmo for verdadeiro, então os seres humanos (ao contrário dessas hipotéticas
criaturas, para quem o naturalismo é verdadeiro) são feitas à imagem divina, o
que inclui a capacidade de conhecimento; assim, Deus escolheria presumivelmente
as leis psicofísicas de modo a que, nas circunstâncias relevantes, a
neurofisiologia produza conteúdo verdadeiro. Mas nada disto é verdadeiro dado o
naturalismo; supor que as propriedades do conteúdo que são adaptativas conduzem
também, na sua maior parte, a conteúdo verdadeiro, seria um optimismo
totalmente injustificado.
Assim, qual é o valor de P(B | N&E&MNR)?
Bem, dado que a verdade de B não faz diferença quanto à
adaptatividade de B, esta poderia efectivamente ser verdadeira, mas é
igualmente provável que seja falsa; teríamos de calcular que a probabilidade de
que é verdadeira é mais ou menos a mesma do que a probabilidade de que é falsa.
Mas isto significa que é improvável que o crente em questão tenha faculdades
cognitivas fidedignas, i.e., faculdades que produzem uma preponderância
suficiente de crenças verdadeiras em relação às falsas. Por exemplo, sendo
assim, se o crente em questão tiver mil crenças independentes, cada uma delas
tendo igual probabilidade de ser falsa ou verdadeira, a probabilidade de,
digamos, 3/4 delas serem verdadeiras (e isto seria uma exigência modesta de
fiabilidade) seria muito baixa — menos de 10-58. Assim, P(B | N&E&MNR),
aplicada a estas criaturas, será baixa. Mas é claro que o mesmo se aplicaria a
nós, se o naturalismo fosse verdadeiro: P(B | N&E&MNR),
aplicada a nós, seria igualmente baixa.14
Este é o argumento para a primeira premissa. Segundo a
premissa 2, quem vê isto e também aceitaN&E tem algo que refuta R,
uma razão para a abandonar, para deixar de crer nela. A defesa oferecida desta
premissa é por meio de uma analogia partindo de casos claros. Suponha-se que
acredito que há uma droga — chamemos-lhe XX — que destrói a fiabilidade
cognitiva; eu acredito que 95% dos que ingerem XX perdem a fiabilidade
cognitiva. Suponha-se ainda que eu acredito agora que ingeri XX e que P(R |
ingeri XX) é baixa; tomadas conjuntamente, estas duas crenças dão-me algo que
refuta a minha crença inicial ou pressuposto de que as minhas faculdades
cognitivas são fidedignas. Além disso, não posso apelar para qualquer das
minhas outras crenças para mostrar ou argumentar que as minhas
faculdades cognitivas ainda são fidedignas; qualquer dessas outras crenças está
também agora sob suspeita ou está comprometida, tal como R. Qualquer
outra crença B é um produto das minhas faculdades cognitivas: mas
então, ao reconhecer isto, e tendo algo que refuta R, tenho também algo
que refuta B. Claro que haverá muitos outros exemplos: chego ao mesmo
resultado se acreditar que sou um cérebro numa cuba e que P(R | sou
um cérebro numa cuba) é baixa; o mesmo se aplica à versão cartesiana clássica
da mesma ideia (nomeadamente, que fui criado por um ser que gosta de me
enganar) e também para cenários mais corriqueiros, por exemplo, a crença de que
enlouqueci (talvez porque tenha sido contaminado com a doença das vacas
loucas). Em todos estes casos, tenho algo que refuta R.
Ora, segundo a premissa 3, quem tem algo que refuta R,
tem algo que refuta qualquer crença que considere que é um produto das suas
faculdades cognitivas — que são, é claro, todas as suas crenças. Essa
pessoa tem portanto algo que refuta a própria N&E; quem aceita N&E (e
vê que P(R | N&E) é baixa) tem algo que refuta N&E, uma
razão para duvidar dela ou rejeitá-la ou para ser agnóstico com respeito a ela.
Nem poderia essa pessoa obter indícios independentes a favor de R; o
processo de o fazer iria é claro pressupor que as suas faculdades são
fidedignas. Ela estaria a apoiar-se na precisão das suas faculdades para
acreditar que os alegados indícios estão de facto presentes e que são de facto
indícios a favor de R. Thomas Reid (1785, 276) formulou este aspecto
como se segue:
“Se a honestidade de um homem é posta em causa, seria
ridículo basearmo-nos na sua própria palavra, seja ele honesto ou não. O mesmo
absurdo há ao procurar provar, por qualquer tipo de raciocínio, provável ou
demonstrativo, que o nosso raciocínio não é falacioso, dado que o que está em
causa é o nosso raciocínio ser ou não digno de confiança.”
O argumento conclui que a conjunção de naturalismo com a
teoria da evolução não pode ser racionalmente aceite — em qualquer caso, por
alguém que seja posto ao corrente deste argumento e veja a conexão entre N&E e R.
Como seria de esperar, este argumento tem sido controverso.
Várias objecções lhe foram levantadas (Beilby 1997; Ginet 1995, 403; O’Connor
1994, 527; Ross 1997; Fitelson e Sober 1998; Robbins 1994; Fales 1996; Lehrer
1996; Nathan 1997; Levin 1997; Fodor 1998). Houve respostas a estas objecções
(Plantinga 2002a; 2003), respostas a estas respostas (Talbott, 2010), etc.; não
há qualquer consenso com respeito ao argumento. Se o argumento for correcto,
contudo, e N&E não puder ser racionalmente aceite, então há um
conflito entre o naturalismo e a evolução; não se pode racionalmente aceitar
ambos. Assim, há um conflito entre o naturalismo e uma das bases principais da
ciência contemporânea. Na medida em que o naturalismo é uma quase-religião em
virtude de desempenhar a função cognitiva de uma religião, há uma espécie de
conflito entre a religião e a ciência —não entre a religião teísta e a ciência,
mas entre o naturalismo e a ciência.
Pelos conselhos sábios e boas sugestões, agradeço a Brian
Boeninger, Thad Botham, E.J. Coffman, Robin Collins, Tom Crisp, Chris Green,
Jeff Green, Marcin Iwanicki, Nathan King, Dan McKaughan, Dolores Morris, Brian
Pitts, Luke Potter e Del Ratzsch.
Mas o que dizer do empirista construtivo e do
instrumentalista? Bem, em qualquer caso visam fazer previsões verdadeiras, ou
teorias que visam fazer previsões verdadeiras, ainda que não teorias verdadeiras.
Distinguimos aqui entre a crença em Deus e a crença
de que Deus existe. A crença em Deusinclui a crença de que Deus
existe e, além disso, envolve confiar em Deus, fazer dos seus os nossos
propósitos, identificarmo-nos com ele e/ou com os seus propósitos, venerá-lo,
comprometermo-nos com ele, etc.
Há excepções. Você usa um computador para calcular o produto
de um par de números com seis algarismos; o computador devolve um certo
número n. O seu conhecimento de que o produto é de facto n — que
é, evidentemente, necessário — é a posteriori; depende do seu
conhecimento a posteriori de que o computador apresenta respostas
correctas. Denomino o mundo efectivo “α;” então, é uma verdade necessária que
(digamos) houve uma guerra civil em α, mas a única maneira de você conhecer
esta verdade necessária é a posteriori.
Houve quem afirmasse haver verdades contingentes de que
temos conhecimento a priori.Outros afirmam que isto é um erro; veja-se
Plantinga 1974, p. 8, n. 1.
“Se existisse uma explicação simples, seria antes em termos
da habitual autoridade societal implacável na supressão da opinião minoritária,
e, no caso de Galileu, com o aristotelismo, e não o cristianismo, no lugar de
autoridade.” (Drake 1980, v).
A sugestão não é que nenhuma teoria científica pode conter
elementos metafísicos; a sugestão é apenas que esta afirmação particular é
claramente metafísica, e também claramente um acrescento: não faz parte da
teoria evolucionista tal como esta é actualmente entendida.
“Impliquem obviamente”: segundo a maior parte das crenças
teístas tradicionais, a existência de Deus é uma verdade necessária. Se o for,
contudo, todas as proposições a implicariam, de modo que a condição em questão
tem de ser formulada com maior circunspecção.
Devo sublinhar que a CBH é um projecto, e não um
instrumento. Os instrumentos usados pelos especialistas em crítica bíblica
histórica — conhecimento da língua, cultura e história relevante, crítica da
resposta do leitor, crítica narrativa, ideias das ciências sociais — são
também, é claro, instrumentos dos comentadores bíblicos tradicionais, assim
como de quem levanta as questões levantadas pelos especialistas em crítica
bíblica histórica, mas de uma perspectiva não limitada pelo NM.
Algo que refuta uma crença B que eu tenha
é outra crença D que adquiro tal que, dada a minha série particular
de crenças e a força com que as mantenho, não posso racionalmente continuar a
aceitar B desde que aceite D; se D for algo que
refuta parcialmente B, então não posso continuar a aceitar (acreditar) B com
a mesma força.
Suponha-se que se descobre uma série de cartas e as últimas
técnicas de datação as localizam na primeira parte do séc. I; nas cartas mais
antigas os apóstolos planeiam o embuste, e nas mais recentes congratulam-se por
ter tudo corrido muito bem… Veja-se van Fraassen (1993), p. 322.
Claro que temos também de eliminar proposições que
implicam B, e talvez certas proposições probabilisticamente relacionadas
com B. Em geral, haverá mais de uma maneira de o fazer. Sem entrar em pormenores,
digamos (um pouco vagamente) que CDC-B é qualquer subconjunto de CDC que não implica B e,
à parte isso, é maximamente semelhante a CDC.
Alternativamente, o naturalismo científico deve ser visto
como a injunção ou resolução de não tolerar quaisquer entidades que não sejam
sancionadas pela ciência contemporânea; see van Fraassen (2002).
Ou, para acomodar o externismo quanto ao conteúdo (“o
significado não ‘tá na cabeça”), relativamente às propriedades NF juntamente
com certas propriedades do meio ambiente. Esta qualificação estará pressuposta
mas não mencionada no que se segue.
Podemos argumentar de modo semelhante a favor da baixa
probabilidade de R dado N&E e o materialismo redutor, a
ideia de que as propriedades de conteúdo são apenas propriedades NF
(complexas); limitações de espaço não permitem apresentar aqui o argumento.
: http://monergismo.com/alvin-plantinga/religiao-e-ciencia