domingo, 30 de setembro de 2012

O Sentido da Vida








O Sentido da Vida por Fernando Savater






«Um dos motivos de ridículo mais justificados em que costumam incorrer os filósofos é o de pretenderem competir com a religião na procura redentora do sentido da vida. É que a pergunta por esse "sentido" é já por si religiosa e a única coisa que a filosofia pode fazer quanto a essa questão é mostrar – tal como pretendo fazer agora - essa religiosidade e tentar reposicionar a pergunta de outra forma para que fique filosoficamente válida. Quando se diz estar a procurar - ou ter encontrado! - o sentido da vida, a que tipo de "sentido" nos estamos a referir? Dizemos que tem "sentido" aquilo que significa algo por meio de outra coisa ou que foi concebido de acordo com determinado fim. O sentido de uma palavra ou frase é o que ela querdizer, o sentido de um sinal é o que quer indicar (uma direcção, a categoria de uma pessoa, etc.) ou do que quer avisar (um perigo, a hora de se levantar, a passagem de peões, etc.); o sentido de um objecto é aquilo para o que se pretende que sirva (comer a sopa, matar o inimigo, falar com alguém afastado, etc.); o sentido de uma obra de arte é o que o seu autor quer expressar (uma forma de beleza, a representação do real, a insatisfação diante do real, a ilusão do ideal, etc.); o sentido de um comportamento ou de uma instituição é o que se pretende conseguir através dela (amor, segurança, diversão, riqueza, ordem, justiça, etc.).
Seja como for, o que interessa para determinar o sentido de qualquer coisa é a intenção que o anima. Os símbolos, obras, condutas e instituições humanas estão cheios do sentido que as nossas intenções lhes conferem, do mesmo modo que os comportamentos dos animais ou até os tropismos das plantas ou dos infusórios. Em todos os casos, a intenção está ligada à vida, a conservá-la, reproduzi-la, diversificá-la, etc. Onde não há vida deixa também de haver intenção e portanto deixa de haver sentido: podemos explicar as causas de uma inundação, de um terramoto ou de um amanhecer, mas não o seu "sentido". Portanto, se as intenções vitais são a única resposta inteligível à pergunta pelo sentido, como poderia ter "sentido" a própria vida? Se todas as intenções remetem como última referência para a vida, que "intenção" poderia ter a própria vida no seu conjunto?
O que é próprio do "sentido" de alguma coisa é que remete intencionalmente para outra coisa que não ela própria: para os propósitos conscientes do sujeito, para os seus instintos e, em último caso, para a autoconservação, auto-regulação e propagação da vida. Mas se nos perguntamos "que quer a vida?", as únicas respostas possíveis - viver, viver mais - trazem-nos de novo para a própria vida sobre a qual perguntamos. Para encontrar o sentido da vida devemos procurar "outra coisa", algo que não seja a vida nem esteja vivo, algo para além da vida. Suponhamos que respondemos "o sentido da vida orgânica é o pleno desenvolvimento do universo inorgânico do qual brotou". Atribuir "intenções" ao inorgânico parece bastante abusivo, pode fazer-se apenas estendendo tanto o significado da palavra "intenção" que nos desconcerta, mas admitamo-lo por um momento. A pergunta imediata é: e qual é o sentido do universo inorgânico? Para responder a isto de modo não auto-referente (evitando dizer "a intenção do universo é continuar a ser universo cada vez mais", por exemplo) temos de nos referir a algo que não faça parte do próprio universo isto é, da natureza tal como a conhecemos, algo "sobrenatural", o que é apelar verdadeiramente para o desconhecido, porque ninguém sabe realmente com que se poderia parecer algo "sobrenatural". Tinha razão Wittgenstein no seuTractatus logico-philosophicus, outra das obras-primas da filosofia deste século, quando disse: "O sentido do mundo tem de se encontrar fora do mundo" (6, 41). Muito bem, mas onde? Terá o mundo um "fora"? (Ver capítulo quinto.) A pergunta sobre o sentido acaba onde acaba o mundo ou poder-se-á continuar a perguntar pelo sentido "mais além"?
O que caracteriza a mentalidade religiosa (por oposição directa à filosófica) não é responder "Deus" à pergunta sobre o sentido ou intenção do universo: o que é propriamente religioso é acreditar que, depois de dada tão sublime resposta, já está justificado deixar de perguntar. Graças a Deus as coisas têm sentido, mas seria ímpio perguntar que sentido tem então Deus. E, no entanto, de um ponto de vista filosófico, a pergunta sobre o sentido de Deus é tão razoável e urgente como a que pretende revelar o sentido do mundo ou o sentido da vida. Se essa pergunta não se pode fazer ou, em nome do Grande Enigma Divino, é suportável não responder a ela ("Deus é o sentido e a pequenez humana nada mais pode saber d'Ele para além disso", etc.) então teria valido o mesmo ficarmos conformados muito antes. Poderíamos ter aceite à partida, por exemplo, a lição daqueles dois versos de O guardador de rebanhos que Fernando Pessoa escreveu:

as coisas não têm significado mas existência,
as coisas são o único sentido oculto das coisas
Deus é uma das explicações para o sentido da vida.
Aceitar que Deus seja o Sentido Supremo, o que dá Sentido a todos os Sentidos, é um acordo com a obscuridade ainda mais conformista do que responder que o sentido de todos os sentidos é a intencionalidade vital ou a intenção humana. Pelo menos existem razões filosóficas para não ampliar para além da vida a pergunta sobre o sentido, isto é, para lá do uso habitual da palavra "intenção": depois de ultrapassada essa barreira já não há porque se deter nem porque se contentar nunca. O religioso não é tanto querer ir para além como acreditar que depois está justificado "travar". Alguns filósofos tentaram com grandes respostas sistemáticas justificar também uma "travagem" semelhante à da religião, quer seja recorrendo ao sobrenatural ou sem chegar a isso. E habitualmente encararam as suas respostas de modo tão dogmático como qualquer pontífice ou inquisidor (ainda que, geralmente, com menos forças repressivas ao seu serviço para castigar os hereges). Merecem o que Cioran anota nos seus Cahiers, publicados postumamente: "Um sistema filosófico é como uma religião, mas mais tola.”
Se a vida não tem "sentido" (pelo mesmo motivo que todos os outros "sentidos" remetem mediata ou imediatamente para a vida), deveremos concluir desoladamente que a vida é absurda? Nem pouco mais ou menos. Chamamos "absurdo" ao que deveria ter sentido mas não tem, não ao que - por cair fora do âmbito do intencional - não "tem de" ter um sentido. Do mesmo modo, dizemos que um homem ou um animal é "cego" quando não vê, mas não podemos dizer, a não ser metaforicamente, que uma pedra seja "cega": porque o homem ou o animal "deveriam" ver segundo a sua condição natural, enquanto que a vista não faz parte do que podemos pedir a uma pedra. Não é absurdo que a vida no seu conjunto não tenha sentido, porque não conhecemos intenções fora das vitais, e para lá do campo do intencional a pergunta pelo sentido... não tem sentido! O que é realmente "absurdo" não é que a vida não tenha sentido, mas empenhar-se em que o tenha de ter.
Na verdade, a procura de um "sentido" para a vida não se preocupa pela vida em geral nem pelo "mundo" em abstracto, mas pela vida humana e pelo mundo em que nós habitamos e sofremos. Ao perguntar se a vida tem sentido, o que queremos saber é se os nossos esforços morais serão recompensados, se vale a pena trabalhar honradamente e respeitar o próximo ou se seria o mesmo entregar-se a vícios criminosos, em suma, se nos espera algo para lá e fora da vida ou apenas o túmulo, como parece evidente. Um dos pensadores que levantou a questão com maior crueza é precisamente alguém habitualmente tão pouco cruel como Kant. No fim da Crítica da Razão[1] fala do homem recto (apresenta como exemplo, nada por acaso, a Espinosa) que está convencido de que não existe Deus nem vida futura. Como fará então para justificar o seu próprio compromisso moral? Por muito boa vontade que desenvolva, os seus sucessos serão sempre limitados e nunca evitarão completamente que o engano, a violência e a inveja continuem a agir à sua vontade sem olhar a nada entre os homens. Tanto ele como os restantes homens justos com que se encontrar - por muito dignos que sejam de obter a felicidade - serão tratados pela imparcial natureza do mesmo modo que os malvados e estarão submetidos "a todos os males da miséria, das doenças, de uma morte prematura, tal como os outros animais da Terra, e continuarão a está-lo até que a Terra profunda os guarde a todos (justos ou não, que isso aqui vale o mesmo) e os volte a fazer desaparecer, a eles que podiam julgar ser o fim final da criação, no abismo do caos informe da matéria de onde foram tirados". Ao constatar este panorama tão pouco animador, a única defesa - segundo Kant - que resta à pessoa decente para salvaguardar a sua rectidão e não a considerar uma preocupação estéril é aceitar a existência de um Deus que seja o criador moral do mundo, garantindo assim um "sentido" ultra mundano feliz para a boa vontade, cá em baixo tão mal retribuída.
À partida não serei eu quem tome de ânimo leve o que pensou sobre este assunto uma inteligência tão preclara e um espírito tão honrado como Kant. Só me atrevo a realçar a possibilidade de uma linha de reflexão alternativa, que também conta com defensores ilustres (julgo que maioritários na filosofia posterior a Kant). De facto, não é por se comportar eticamente e por lutar para que exista mais solidariedade e justiça no mundo humano que nenhum homem ou nenhuma mulher consegue escapar ao destino comum que a nossa condição mortal nos reserva. Também nenhum esforço, por mais recto que seja, libertará definitivamente a nossa convivência de engano e violência, possibilidades sempre abertas à liberdade de cada um e demasiadas vezes favorecidas por estruturas socioeconómicas desviantes. Mas implicará isto necessariamente que o projecto moral seja sem sentido e supérfluo, a não ser que alguma sanção sobrenatural o avalize contra a própria morte? O homem recto (e prudente!) quer viver melhor, não escapar à sua condição mortal: tenta fazer o bom não só apesar de ter consciência de que o mau sempre existirá mas até precisamente por isso, para defender do irremediável a fragilidade preciosa do que considera preferível. Não se conduz eticamente para conseguir algum prémio ou retribuição, mas chama "ética" à forma de agir que o recompensa na sua própria actividade, fazendo-o saber-se mais razoavelmente humano e livre. Em suma, não vive para a morte ou para a eternidade mas para alcançar a plenitude da vida na brevidade do tempo. Pelo menos acredito que Espinosa teria respondido algo deste género a Kant.
Digamo-lo de outra forma. O homem sabe-se mortal e é esse destino que o desperta para a tarefa de pensar. A sua primeira reacção diante da certeza da morte (no caso de optar por não a negar e renunciar a refugiar-se na ilusão de algum tipo de existência no além) é de desespero angustiado, pelas razões bem expostas mais atrás por Kant. Que comportamento lhe ditará o desespero? Sem dúvida medo perante tudo o que o ameaça de acelerar o seu fim (privações, hostilidade, doença, etc.), acompanhado por avidez de acumular tudo o que lhe parece dar resguardo diante da morte (riqueza, segurança, proeminência social, nome, etc.) e ódio relativamente àqueles que lhe disputam esses bens e parecem obrigá-lo a partilhá-los: quem tem medo do nada, precisa de tudo. O medo, a avidez e o ódio são as características de viver desesperadamente: naturalmente também não conseguem salvar ninguém do seu destino fatal, mas, em contrapartida, introduzem omal-estar da morte em cada momento da vida, mesmo nos seus maiores gozos.
Quando se consegue sobrepor ao desespero, o ser humano constata que é tão verdade que vai morrer como que agora está vivo. Se a morte consiste em não ser nem estar de modo nenhum em parte nenhuma, todos já derrotamos a morte uma vez, a decisiva. Como? Nascendo. Não haverá morte eterna para nós, visto que jáestamos vivos, ainda vivos. E a certeza gloriosa da nossa vida não poderá ser apagada nem turvada pela certeza da morte. De modo que temos direito a perguntar, tal como no livro sagrado: "Morte, onde está a tua vitória?" A morte poderá um dia impedir que continuemos a viver, nunca que agora estejamos vivos nem que já tenhamos vivido. Pode transformar em cinza o nosso corpo, os nossos amores e as nossas obras, mas não a presença real da nossa vida. Porque haveria a morte futura de tirar importância à vida, quando a vida presente já se impôs à escura e eterna morte? Porque é que a morte, em que não somos, deveria ter mais importância para nós do que a vida que somos? Cada um pode repetir, com o poeta Lautréamont: "Não conheço outro bem que o de ter nascido. Um espírito imparcial acha-o completo.”


O ser humano, quando constata a sua presença na vida, exalta-se. E essa constatação exaltada é o que constitui a alegria. A alegria afirma e assume a vida face à morte, face ao desespero. A alegria não celebra os conteúdos concretos da vida, frequentemente atrozes, mas a própria vida porque não é a morte, porque não é "não" mas "sim", porque é tudo face ao nada. Mas a alegria não é puro êxtase, mas actividade e vai ainda mais além: luta contra o mal-estar desesperado da morte que nos contagia de medo, de avidez e de ódio. A alegria nunca poderá triunfar completamente sobre o desespero (dentro de cada um de nós coexistem o desespero e a alegria) mas também não se renderá diante dela. Baseando-nos na alegria, procuramos "aligeirar" a vida do peso opressor e nefasto da morte. O desespero só conhece o nada que ameaça cada um, enquanto que a alegria procura apoio e estende a sua simpatia activa aos nossos semelhantes, os mortais vivos. A sociedade é o laço formado por mil cumplicidades, que une aqueles que sabem que vão morrer para afirmarem juntos a presença da vida.
Se a morte é esquecimento, a sociedade será comemoração; se a morte é igualdade definitiva, a sociedade instaurará as diferenças. Se a morte é silêncio e ausência de significado, o eixo da sociedade será a linguagem que transforma tudo em significativo. Se a morte é debilidade completa, a sociedade procurará a força e a energia. Se a morte é insensibilidade, a sociedade inventará e potenciará todas as sensações, o esbanjamento "sensacional". Como a morte é o isolamento final, a sociedade instituirá a companhia do afecto e do auxílio mútuo na infelicidade. Se a morte é imobilidade, a sociedade humana premiará as viagens e a velocidade que nada consegue deter. Se a morte é a repetição do mesmo, a sociedade tentará o novo e amará os velhos gestos da vida como algo sempre novo, os novos seres como nós, a progénie indomável dos mortais. Contra a putrefacção informe cultivará a formosura, o jogo onde se pode morrer e ressuscitar muitas vezes, a metamorfose do significado. Cada sociedade é uma prótese da imortalidade para mortais, aqueles que conhecem a morte mas afrontam as suas lições desesperadamente aniquiladoras. É verdade que todos os empreendimentos sociais dos humanos estão também marcados pelo medo, pela avidez, e pelo ódio do desespero. Porém, não é o desespero que cria, mas a alegria. Nisto consiste a verdadeira lição da ética. Por isso Espinosa chamou ao homem justo "alegre" e sábio.
Em si mesmo, o mundo em que nós, humanos, nos movemos não tem qualquer sentido ou significado próprios. Como se prova? Que resiste a todos, por mais diferentes que sejam. Como notou Castoríadis "só pelo facto de não existir um significado intrínseco ao mundo os homens lhe souberam e tiveram de atribuir esta variedade extraordinária de significados extremamente heterogéneos". O sentido é algo que nós, humanos, damos à vida e ao mundo face ao abismo insignificante do caos, que vencemos aparecendo e ao qual nos submetemos morrendo. É uma grande vitória e uma derrota insignificante, porque o indivíduo morre, mas o sentido que ele quis dar à sua vida não morre... Esse fica para nós, seus companheiros de humanidade. Mas o abismo caótico também está oculto em todos os nossos significados, como o seu reverso, como a sua espessura. Vivemos sobre o abismo e conscientes dele. Por isso a razão humana não é simples fábrica de instrumentos nem se contenta em encontrar soluções para perguntas ainda não definitivas. E também é por isso que a filosofia não é apenas razão mas também imaginação criadora: "E a mediação do imaginário, do inverificável (o poético), são as possibilidades da ficção (mentira) e os saltos sintáticos para manhãs sem fim que transformaram homens e mulheres em charlatães, em censuradores, em poetas, em metafísicos, em planificadores, em profetas e em rebeldes diante da morte" (George Steiner, em Errata).
A religião promete salvar a alma e ressuscitar o corpo. Pelo contrário, a filosofia nem salva nem ressuscita mas apenas pretende levar até onde for possível a aventura do sentido do humano, a exploração dos significados. Nem rejeita a realidade da morte - como o mito - nem se deixa embuir desesperadamente pelo medo e pelo ódio que dela brotam: procura pensar os conteúdos da vida e os seus limites... como se a própria vida dependesse disso. E fá-lo com tanto afinco que às vezes provoca a troça e o sorriso.»

SAVATER, Fernando, As Perguntas da Vida, Lisboa, Pub. Dom Quixote, pp. 267-275.



Para que Filosofia?

Paulinho da Viola
Música: Filosofia







Marilena Chauí, Filósofa e historidora.
Para que Filosofia?          


Em   nossa   vida   cotidiana,   afirmamos,   negamos,   desejamos,   aceitamos   ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”, ou  “que  dia  é  hoje?”. Dizemos frases como  “ele está sonhando ”, ou  “ela ficou 
maluca”. Fazemos afirmações como  “onde há fumaça, há fogo ”, ou  “não saia na chuva  para  não  se  resfriar”. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, “esta  casa  é  mais  bonita  do  que  a  outra”  e  “Maria  está  mais  jovem  do  que Glorinha”. 
Numa  disputa,  quando  os  ânimos  estão  exaltados,  um  dos  contendores  pode 
gritar  ao  outro:  “Mentiroso!  Eu  estava  lá  e  não  foi  isso  o  que  aconteceu”,  e 
alguém,  querendo  acalmar  a  briga,  pode  dizer:  “Vamos  ser  objetivos,  cada um diga o que viu e vamos nos entender”. 
Também  é  comum  ouvirmos  os  pais  e  amigos  dizerem  que  somos  muito 
subjetivos  quando  o  assunto  é  o  namorado  ou  a  namorada.  Freqüentemente, 
quando  aprovamos  uma  pessoa,  o  que  ela  diz,  como  ela  age,  dizemos  que essa pessoa “é legal ”. 
Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano. 
Quando pergunto  “que horas são?” ou  “que dia é hoje?”, minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que  acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe,  que  ele  passa,  pode  ser  medido  em  horas  e  dias,  que  o  que  já  passou  é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós. 
Quando  digo   “ele  está  sonhando ”,  referindo-me  a  alguém  que  diz  ou  pensa alguma  coisa  que  julgo  impossível  ou  improvável,  tenho  igualmente  muitas crenças  silenciosas:  acredito  que  sonhar  é  diferente  de  estar  acordado,  que,  no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também  que  o  sonho  se  relaciona  com  o  irreal,  enquanto  a  vigília  se  relaciona 
com o que existe realmente. 
Acredito,  portanto,  que  a  realidade  existe  fora  de  mim,  posso  percebê-la  e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão. 
A frase  “ela ficou maluca” contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos  diferenciar  razão  de  loucura  e  maluca  é  a  pessoa  que  inventa  uma realidade  existente  só  para  ela. Assim,  ao  acreditar  que  sei  distinguir  razão  de loucura,  acredito  também  que  a  razão  se  refere  a  uma  realidade  que  é  a  mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas. Quando alguém diz “onde há fumaça, há fogo” ou “não saia na chuva para não se resfriar”, afirma silenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça 
como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realidade  é  feita  de  causalidades,  que  as  coisas,  os  fatos,  as  situações  se encadeiam  em  relações  causais  que  podemos  conhecer  e,  até  mesmo,  controlar para o uso de nossa vida. Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, 
bom,  ruim)  ou  pela  quantidade  (mais,  menos,  maior,  menor).  Julgamos,  assim, que  a  qualidade  e  a  quantidade  existem,  que  podemos  conhecê-las e usá-las em nossa vida. Se,  por  exemplo,  dissermos  que   “o  sol  é  maior  do  que  o  vemos”,  também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes, ora  tais  como  são  em  si  mesmas,  ora  tais  como  nos  aparecem,  dependendo da distância, de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos. 
Acreditamos, portanto, que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo)  e quantidades,  podendo  ser  medido  (comprimento,  largura,  altura).  No exemplo  do  sol,  também  se  nota  que  acreditamos  que  nossa  visão  pode  ver  as coisas  diferentemente  do  que  elas  são,  mas  nem  por  isso  diremos  que  estamos sonhando ou que ficamos malucos. 
Na briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa  crença  de  que  há diferença  entre  verdade  e  mentira.  A  primeira  diz  as  coisas  tais  como  são, enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade. 
No  entanto,  consideramos  a  mentira  diferente  do  sonho,  da  loucura  e  do  erro porque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos. 
Com  isso,  acreditamos  que  o  erro  e  a  mentira  são  falsidades,  mas  diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear. Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano   involuntários e a segunda   uma   decisão   voluntária,   manifestamos silenciosamente  a  crença  de  que  somos  seres  dotados  de  vontade  e  que  dela depende dizer a verdade ou a mentira. 
Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira “no duro”, “pra valer”. 
Quando   distinguimos   entre   verdade   e   mentira   e   distinguimos   mentiras inaceitáveis   de   mentiras   aceitáveis,   não   estamos   apenas   nos   referindo   ao conhecimento  ou  desconhecimento  da  realidade,  mas  também  ao  caráter  da pessoa,  à  sua  moral.  Acreditamos,  portanto,  que  as  pessoas,  porque  possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal. Na  briga,  quando  uma  terceira  pessoa  pede  às  outras  duas  para  que  sejam “objetivas” ou quando falamos dos namorados como sendo  “muito subjetivos”, também estamos cheios de crenças silenciosas. Acreditamos que quando alguém quer  defender  muito  intensamente  um  ponto  de  vista,  uma  preferência,  uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém “perde” a objetividade, ficando “muito subjetivo ”. 
Com isso, acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas  tais  como  são  verdadeiramente,  enquanto  a  subjetividade  é  uma  atitude parcial,  pessoal,  ditada  por  sentimentos  variados  (amor,  ódio,  medo,  desejo). Assim,  não  só  acreditamos  que  a  objetividade  e  a  subjetividade  existem,  como Convite à Filosofia ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade, enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma. Ao  dizermos  que  alguém  “é  legal ”  porque  tem  os  mesmos  gostos,  as  mesmas idéias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas  - família, amigos, escola, trabalho, sociedade, política - nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais, políticos, religiosos e artísticos, regras de conduta, finalidades de vida. 
Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus  semelhantes  e  procuram  distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais,  pois  regras,  normas,  valores,  finalidades  só  podem  ser  estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio. Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação  tácita  de  evidências  que  nunca  questionamos  porque  nos  parecem naturais,  óbvias.  Cremos  no  espaço,  no  tempo,  na  realidade,  na  qualidade,  na quantidade,  na  verdade,  na  diferença  entre  realidade  e  sonho  ou  loucura,  entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade. 
A atitude filosófica  
Imaginemos,   agora,   alguém   que   tomasse   uma   decisão   muito   estranha   e começasse  a  fazer  perguntas  inesperadas.  Em  vez  de  “que horas são?” ou  “que dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer  “está sonhando” ou “ficou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão? 
Se   essa   pessoa   fosse   substituindo   sucessivamente   suas   perguntas,   suas 
afirmações por outras:  “Onde  há  fumaça,  há  fogo ”, ou  “não  saia  na  chuva  para não  ficar  resfriado”,  por:  O  que  é  causa?  O  que  é  efeito?;  “seja  objetivo ”, ou “eles   são   muito   subjetivos”,   por:   O   que   é   a   objetividade?   O   que   é   a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo? Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe  verdade  e  por  quê?  Quando existe ilusão e por quê? Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O que são os sentimentos? Se, em lugar de discorrer tranqüilamente sobre  “maior” e  “menor” ou  “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade?
E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: 
O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade? Alguém que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. 
Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças  e  nossos  sentimentos.  Esse  alguém  estaria  começando  a  adotar  o  que chamamos de atitude filosófica. Assim,  uma  primeira  resposta  à  pergunta  “O  que  é  Filosofia?”  poderia  ser:  A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações,  os  valores,  os  comportamentos  de  nossa  existência  cotidiana;  jamais 
aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido. Perguntaram,  certa  vez,  a  um  filósofo:  “Para  que  Filosofia?”.  E  ele  respondeu: “Para    não    darmos    nossa    aceitação    imediata    às    coisas,    sem    maiores considerações”. 
A atitude crítica 
A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso  comum,  aos  pré-conceitos,  aos  pré-juízos,  aos  fatos  e  às  idéias  da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido. A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que  é?  Por  que  é?  Como  é?  Essas  são  as  indagações  fundamentais  da  atitude filosófica. 
A  face  negativa  e  a  face  positiva  da  atitude  filosófica  constituem  o  que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico. A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e,  portanto,  começa  dizendo  que  não  sabemos  o  que  imaginávamos  saber;  por isso,  o  patrono  da  Filosofia,  o  grego  Sócrates,  afirmava  que  a  primeira  e fundamental  verdade filosófica é dizer:  “Sei que nada sei”.  Para  o  discípulo  de Sócrates,  o  filósofo  grego  Platão,  a  Filosofia  começa  com  a  admiração;  já  o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com o espanto. 
Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, Convite à Filosofia como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o  que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que 
somos, por que somos e como somos. como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o  que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos. 


Para que Filosofia? 
Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia? 
É  uma  pergunta  interessante.  Não  vemos  nem  ouvimos  ninguém  perguntar,  por exemplo,  para  que  matemática  ou  física?  Para  que  geografia  ou  geologia?  Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia? Em  geral,  essa  pergunta  costuma  receber  uma  resposta  irônica,  conhecida  dos estudantes de Filosofia:  “A  Filosofia  é  uma  ciência  com  a  qual  e  sem  a  qual  o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se  costuma  chamar  de  “filósofo”  alguém  sempre  distraído,  com  a  cabeça  no mundo  da  lua,  pensando  e  dizendo  coisas  que  ninguém  entende  e  que  são perfeitamente inúteis. 
Essa pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser. 
Em  nossa  cultura  e  em  nossa  sociedade,  costumamos  considerar  que  alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata. 
Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade  das  ciências  nos  produtos  da  técnica,  isto  é,  na  aplicação  científica  à realidade. 
Todo  mundo  também  imagina  ver  a  utilidade  das  artes,  tanto  por  causa  da compra  e  venda  das  obras  de  arte,  quanto  porque  nossa  cultura  vê  os  artistas como  gênios  que  merecem  ser  valorizados  para  o  elogio  da  humanidade. 
Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para coisa alguma. 
Parece,  porém,  que  o  senso  comum  não  enxerga  algo  que  os  cientistas  sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a  procedimentos  rigorosos  de  pensamento;  pretendem  agir  sobre  a  realidade, através  de  instrumentos  e  objetos  técnicos;  pretendem  fazer  progressos  nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os. Ora,  todas  essas  pretensões  das  ciências  pressupõem  que  elas  acreditam  na existência  da  verdade,  de  procedimentos  corretos  para  bem  usar  o  pensamento, na   tecnologia   como   aplicação   prática   de   teorias,   na   racionalidade   dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.  
Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria  e  prática,  correção  e  acúmulo  de  saberes:  tudo  isso  não  é  ciência,  são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas. 
Assim,  o  trabalho  das  ciências  pressupõe,  como  condição,  o  trabalho  da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas  e  filósofos  sabem  disso,  o  senso  comum  continua  afirmando  que  a Filosofia não serve para nada. 
Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se  “servir” fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros  com  eles;  consideram  também  que  a  Filosofia  nada  teria  a  ver  com  a ciência e a técnica. 
Para  quem  pensa  dessa  forma,  o  principal  para  a  Filosofia  não  seriam  os conhecimentos  (que  ficam  por  conta  da  ciência),  nem  as  aplicações  de  teorias (que  ficam  por  conta  da  tecnologia),  mas  o  ensinamento  moral  ou  ético.  A Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia  teria como finalidade ensinar-nos a virtude, que é o princípio do bem-viver. 
Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas  perguntas  desconcertantes  e  embaraçosas:  O  que  é  o  homem?  O  que  é  a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas? Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade,  nem  o  conhecimento  da  nossa  capacidade  para  conhecer,  mesmo  se disséssemos  que  o  objeto  da  Filosofia  é  apenas  a  vida  moral  ou  ética,  ainda assim, o  estilo filosófico e a  atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem. Atitude filosófica: indagar Se,  portanto,  deixarmos  de  lado,  por  enquanto,  os  objetos  com  os  quais  a Filosofia   se   ocupa,   veremos   que   a   atitude   filosófica   possui   algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas características são: - perguntar o que  a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual; Convite à Filosofia -  perguntar  como  a  coisa,  a  idéia  ou  o  valor,  é.  A  Filosofia  indaga  qual  é  a estrutura  e  quais  são  as  relações  que  constituem  uma  coisa,  uma  idéia  ou  um valor; - perguntar  por  que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor. 
A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar. 
Por  isso,  pouco  a  pouco,  as  perguntas  da  Filosofia  se  dirigem  ao  próprio pensamento:  o  que  é  pensar,  como  é  pensar,  por  que  há  o  pensar?  A  Filosofia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão. A reflexão filosófica Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a  si  mesmo.  A  reflexão  é  o  movimento  pelo  qual  o  pensamento  volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo. 
A reflexão filosófica é radical  porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo  para  conhecer-se  a  si  mesmo,  para  indagar  como  é  possível  o próprio pensamento. 
Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo,  que  se  relacionam  com  os  outros  seres  humanos,  com  os  animais, as plantas,  as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações. 
A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações. 
A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões: 
1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é, quais os  motivos, as  razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos? 
2.  O  que  queremos  pensar  quando  pensamos,  o  que  queremos  dizer  quando falamos,  o  que  queremos  fazer  quando  agimos?  Isto  é,  qual  é  o  conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos? 
3.  Para  que  pensamos  o  que  pensamos,  dizemos  o  que  dizemos,  fazemos  o  que fazemos? Isto é, qual é a  intenção ou a  finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento? Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com  ele  se  relacionam.  São  perguntas  sobre  a  essência, a  significação  ou  a estrutura e a origem de todas as coisas. 
Já  a  reflexão  filosófica  indaga:  Por  quê?,  O  quê?,  Para  quê?,  dirigindo-se  ao pensamento,  aos  seres  humanos  no  ato  da  reflexão.São  perguntas  sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir. 

Inútil? Útil?
O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para
quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil? O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e  riqueza.  Julga  o  útil  pelos  resultados  visíveis  das  coisas  e  das  ações, identificando  utilidade  e  a  famosa  expressão  “levar  vantagem  em  tudo”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o di reito de ser inútil.
Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira? Platão  definia  a  Filosofia  como  um  saber  verdadeiro  que  deve  ser  usado  em benefício dos seres humanos.
Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas  as  coisas  que  os  humanos  podem  alcançar  para  o  uso  da  vida,  a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes.
Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para  saber  o  que  pode  conhecer  e  o  que  pode  fazer,  tendo  como  finalidade  a felicidade humana.
Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos.
Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo.
Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Qual seria, então, a utilidade da Filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil;  se  buscar  compreender  a  significação  do  mundo,  da  cultura,  da  história for útil;  se  conhecer  o  sentido  das  criações  humanas  nas  artes,  nas  ciências  e  na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes  de  si  e  de  suas  ações  numa  prática  que  deseja  a  liberdade  e  a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.
Fonte: Marilena Chaui Convite à Filosofia  Ed. Ática, São Paulo, 2000.