KARL POPPER SOBRE, A SOCIEDADE E SEUS INIMIGOS, AS RAÍZES ARISTOTÉLICAS DO HEGELIANISMO, HEGEL E O NOVO TRIBALISMO E O DETERMINISMO SOCIOLÓGICO DE MARX.
A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS
As sociedades tribais caracterizam-se por uma atitude mágica
ou irracional dos costumes da vida social e pela sua rigidez. Não distinguem as
regularidades convencionais da vida social das regularidades da “natureza”;
crêem que ambas são impostas por uma vontade sobrenatural. Baseadas na tradição
tribal coletiva, não admitem problemas de natureza moral, e suas instituições
não dão espaço à responsabilidade pessoal. À sociedade mágica, tribal ou
coletivista – comparável a um organismo – denomino sociedade fechada; e sociedade
democrática à sociedade em que os indivíduos são confrontados com decisões
pessoais.
A transição de uma sociedade fechada para a aberta constitui
uma das mais profundas revoluções por que passou a humanidade. Essa revolução
não foi feita conscientemente, nem isenta de perigos. Gerou tentativas de
manter o tribalismo pela força; mas também levou à grande revolução espiritual,
à invenção da discussão crítica e ao pensamento liberto de obsessões mágicas. A
Grande Geração que viveu em Atenas na época da Guerra do Peloponeso formulou os
princípios da igualdade perante a lei e do individualismo político. Enfatizou
também que o idioma, os costumes e a lei não têm o caráter mágico de tabus –
são instituições humanas, convencionais. E insistiu que somos responsáveis por
essas instituições, que devemos ter fé na razão humana, ao mesmo tempo
resguardando-nos do dogmatismo: em outras palavras, que é crítico o espírito da
ciência. O surgimento da própria filosofia foi uma resposta à queda da
sociedade fechada e de suas crenças mágicas. Uma tentativa de substituir a
perdida fé mágica por uma fé racional; modificou a tradição de transmitir uma
teoria ou um mito, fundando uma tradição nova: a de desafiar teorias e mitos e
de discuti-los criticamente.
Em contraste, o sonho de Platão – da unidade, da beleza e
perfeição, o esteticismo, o holismo e o coletivismo – é tanto produto quanto
sintoma da perda do espírito de grupo do tribalismo. É a expressão dos sentimentos
dos que sofrem da tensão da civilização – nos tornamos dolorosamente
conscientes das grandes imperfeições de nossa vida, das imperfeições pessoais e
institucionais, do sofrimento evitável. Essa consciência aumenta a tensão da
responsabilidade pessoal, de carregar a cruz de ser humano.
A lição que devemos aprender de Platão é exatamente a oposta
à que ele tenta nos ensinar. A
despeito da excelência do diagnóstico sociológico, sua
terapêutica é pior que o mal que tentava combater. Deter a mudança política não
é o remédio; não pode trazer a felicidade. Uma vez que comecemos a confiar em nossa
razão e sintamos o apelo das responsabilidades pessoais e, com estas, a
responsabilidade de promover o conhecimento, não podemos retornar ao estado de
submissão na magia tribal. Não há volta possível a um estado harmonioso da
natureza. Se voltarmos, deveremos refazer o caminho integral – devemos retornar
às feras.
AS RAÍZES ARISTOTÉLICAS DO HEGELIANISMO
Para Aristóteles, uma das causas de qualquer coisa,
movimento ou mudança, é a finalidade a que tende o movimento. O Bem pode estar
tanto no ponto de partida do movimento como em seu fim: a Forma ou essência de
qualquer coisa em movimento torna-se idêntica ao estado final para o qual
tende. A Forma ou Idéia, que é o Bem, fica no fim, em vez de estar no princípio
– o otimismo substitui o pessimismo. As Idéias não mais existem separadas das
coisas sensíveis: a Forma está na coisa. Toda mudança significa a realização de
algumas das potencialidades inerentes à essência da coisa – sua fonte interna
de mudança ou movimento.
Três doutrinas historicistas originam-se do essencialismo de
Aristóteles: 1) Somente através da
história de um Estado podemos conhecer sua “essência oculta
e não desenvolvida”. Essa doutrina levou ao princípio de que só podemos
conhecer entidades sociais aplicando-lhes o método histórico, estudando as mutações
sociais. 2) Só a mudança pode tornar aparente a essência e as potencialidades
que desde o princípio eram inerentes ao objeto em mutação. Essa doutrina levou
à noção historicista de um destino histórico, essencial, do qual não se pode
fugir. 3) A fim de tornar-se real, a essência deve desdobrar-se na mudança.
Aristóteles distingue conhecimento de opinião. O
conhecimento, ou ciência, pode ser de duas
espécies: demonstrativo ou intuitivo. O conhecimento
demonstrativo é o conhecimento das “causas”. O conhecimento intuitivo consiste
na apreensão da essência de uma coisa; é a fonte originadora de toda ciência, já
que apreende as premissas básicas de todas as demonstrações. O ideal
aristotélico do conhecimento perfeito consiste na compilação dessas definições
intuitivas de todas as essências; o progresso do conhecimento consiste na
gradual acumulação de definições.
Essa concepção essencialista contrasta com os métodos da
ciência moderna. Embora em ciência façamos o melhor para encontrar a verdade,
nunca temos segurança de havê-la alcançado. Aprendemos, de muitas decepções,
que não podemos esperar uma finalidade; a não nos decepcionarmos se nossas teorias
científicas forem refutadas, pois podemos, na maioria dos casos, verificar com
grande confiança qual de duas teorias é a melhor. Podemos saber se estamos
fazendo progresso; é esse conhecimento que nos consola da perda da ilusão de
finalidade e certeza. Sabemos que nossas teorias científicas devem sempre
permanecer como hipóteses. Se forem distintas, levarão a predições diferentes,
que podem ser falsificadas; à base da experimentação, podemos verificar se a
nova teoria leva a resultados mais satisfatórios que a anterior. Em nossa busca
da verdade, substituímos a certeza científica pelo progresso científico. Essa
concepção do método científico é ratificada pelo progresso da ciência, que não
se desenvolveu como pensava Aristóteles, mas por um método muito mais
revolucionário: progredimos pela proposição de idéias e teorias novas, e pelo
abandono das antigas. Em ciência não há “conhecimento” no sentido que Platão e Aristóteles
entendiam essa palavra, que implica finalidade. Em ciência, nunca temos razão
suficiente para acreditar que atingimos a verdade. A concepção essencialista é
simplesmente insustentável e incompatível com a ciência.
HEGEL E O NOVO TRIBALISMO
Hegel, a fonte de todo o historicismo contemporâneo, foi um
seguidor direto de Heráclito, Platão e Aristóteles, o “elo perdido”, por assim
dizer, entre Platão e a forma moderna de totalitarismo, que adora o Estado, a
História e a Nação. A doutrina hegeliana afirma que o Estado é tudo, e o
indivíduo, nada. Com Aristóteles, Hegel acredita que as Idéias são idênticas a
coisas em fluxo. Estas não tendem a se afastar da Idéia, em direção à
decadência; como Espeusipo e Aristóteles, a tendência é na direção contrária,
para a Idéia.
As próprias essências se desenvolvem, em oposição a Platão,
que originalmente as introduziu para obter um ponto fixo estável.
O historicismo de Hegel é otimista. Seu mundo em fluxo é um
estado de “evolução criativa”; cada uma de suas etapas contém as precedentes,
das quais se origina; e cada etapa supera todas as etapas anteriores, aproximando-se
cada vez mais da perfeição. A lei geral do desenvolvimento é, assim, a do
progresso.
O coletivista Hegel, como Platão, visualiza o Estado como um
organismo, dotado de uma “vontade geral” coletiva rousseauniana – sua essência
consciente e pensadora, sua “razão”. Esse “Espírito”, cuja “própria essência é
a atividade”, é também o coletivo Espírito da Nação que forma o Estado.
Conhecemos sua essência e suas “potencialidades” pelo conhecimento de sua
“efetiva” história, ou melhor, através da história do seu “Espírito”.
O primeiro pilar da filosofia hegeliana é o método
dialético. Como Heráclito, Hegel acredita na identidade dos opostos e sua
permanente tensão. É da própria natureza da razão que se contradiga; não é uma fraqueza
das faculdades humanas, mas a essência de toda racionalidade o fato de que esta
opera dialeticamente com contradições e antinomias, já que é desse modo que a
razão (e a ciência) se desenvolve: não somente as contradições são admissíveis,
como inevitáveis e desejáveis. A própria razão é o produto da herança social e
do desenvolvimento histórico dialético da Nação.
O segundo dos pilares do hegelianismo é a denominada
filosofia da identidade, ela própria uma aplicação da dialética. O elo entre a
dialética de Hegel e sua filosofia da identidade é a doutrina de Heráclito sobre
a unidade dos opostos. Hegel adota, da doutrina de Platão, a equação Ideal =
Real. Da dialética de Kant, Hegel aceita serem as Idéias algo mental, algo
espiritual ou racional, o que pode expressar-se pela equação Idéia = Razão.
Combinadas, essas duas equações, ou equívocos, dão-nos Real = Razão. Isso
permite a Hegel afirmar que tudo que é razoável deve ser real, e tudo que é
real deve ser razoável; o desenvolvimento da realidade é o mesmo da razão. E
como não pode existir padrão mais alto do que o último desenvolvimento da Razão
e da Idéia, tudo o que agora existe, existe por necessidade, e deve ser
razoável e bom.
A filosofia da identidade, afora seu positivismo ético,
implica como subproduto uma teoria da verdade: tudo que é razoável é real e,
portanto, deve ser verdadeiro. A verdade se desenvolve do mesmo modo que a razão,
e tudo quanto apela para a razão na sua última etapa de desenvolvimento deve
também ser verdadeiro para essa etapa. A evidência, por si mesma, é o mesmo que
a verdade. Desse modo, a oposição entre o que Hegel chama o “Subjetivo”, a
crença, e o “Objetivo”, a verdade, transforma-se numa identidade; e essa
unidade dos opostos explica também o conhecimento científico.
O DETERMINISMO SOCIOLÓGICO DE MARX
O interesse de Marx pela ciência social e pela filosofia
social era fundamentalmente prático; ele via no conhecimento um meio de
promover o progresso da humanidade. Apesar de seus méritos, creio que Marx foi um
falso profeta do curso da história; suas profecias não se materializaram; pior,
induziu muitos à crença de que a profecia histórica é o modo científico de
abordar os problemas sociais. Marx é responsável pela devastadora influência do
método historicista nas fileiras dos que desejam impulsionar a causa da
sociedade democrática.
O marxismo é uma teoria puramente histórica, que visa
predizer o curso futuro dos eventos
econômicos e do poder político, e especialmente as
revoluções. Marx rejeitou qualquer tipo de mecânica social, que denunciou como
utópicas e ilegítimas. Como Lênin admite, dificilmente se encontra na obra de
Marx uma palavra sobre a economia socialista, à exceção de lemas inúteis como
“de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo suas necessidades”.
Marx considerou sua missão liberar o socialismo do fundo
sentimental, moralista e visionário. O socialismo devia passar da etapa utópica
para a científica; devia basear-se no método científico de analisar causa e
efeito, e na predição científica. Como admitiu que a predição no campo social é
idêntica à profecia histórica, o socialismo científico deveria basear-se em um
estudo das causas e dos efeitos históricos, e na profecia de seu próprio
advento.
Creio ser inteiramente correta a afirmação de que o marxismo
é, fundamentalmente, um método. Como tal, o marxismo deve ser submetido à prova
e criticado por padrões metodológicos. Deve-se indagar se, como método, tem ou
não capacidade de impulsionar a tarefa da ciência. Os padrões pelos quais
devemos julgar o método marxista devem ser, portanto, de natureza prática.
A ênfase sobre a predição científica é em si mesma uma
descoberta metodológica importante.
Contudo, o argumento plausível de que a ciência só pode
predizer o futuro se este for predeterminado levou Marx a aderir à falsa crença
de que o método científico deve estar baseado num determinismo rígido. A crença
de que os termos “científico” e “determinista” estão inseparavelmente ligados
persiste ainda como uma superstição, reminiscência de um tempo que ainda não
passou de todo.
Não há razão para acreditar que, dentre todas as ciências, a
ciência social seja capaz de revelar o que o futuro nos reserva. Essa crença na
adivinhação científica não se fundamenta só no determinismo; sua outra base é a
confusão entre predição científica, como a que conhecemos da física ou da
astronomia, e profecia histórica de longo prazo, que prenuncia as principais
tendências do desenvolvimento futuro da sociedade. Essas duas espécies de
predição são muito diferentes, e o caráter científico da primeira não é de argumento
em favor do caráter científico da segunda.
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