sexta-feira, 19 de julho de 2013

KARL POPPER SOBRE, A SOCIEDADE E SEUS INIMIGOS, AS RAÍZES ARISTOTÉLICAS DO HEGELIANISMO, HEGEL E O NOVO TRIBALISMO E O DETERMINISMO SOCIOLÓGICO DE MARX.





KARL POPPER SOBRE, A SOCIEDADE E SEUS INIMIGOS, AS RAÍZES ARISTOTÉLICAS DO HEGELIANISMO, HEGEL E O NOVO TRIBALISMO E  O DETERMINISMO SOCIOLÓGICO DE MARX.







A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS

As sociedades tribais caracterizam-se por uma atitude mágica ou irracional dos costumes da vida social e pela sua rigidez. Não distinguem as regularidades convencionais da vida social das regularidades da “natureza”; crêem que ambas são impostas por uma vontade sobrenatural. Baseadas na tradição tribal coletiva, não admitem problemas de natureza moral, e suas instituições não dão espaço à responsabilidade pessoal. À sociedade mágica, tribal ou coletivista – comparável a um organismo – denomino sociedade fechada; e sociedade democrática à sociedade em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais.
A transição de uma sociedade fechada para a aberta constitui uma das mais profundas revoluções por que passou a humanidade. Essa revolução não foi feita conscientemente, nem isenta de perigos. Gerou tentativas de manter o tribalismo pela força; mas também levou à grande revolução espiritual, à invenção da discussão crítica e ao pensamento liberto de obsessões mágicas. A Grande Geração que viveu em Atenas na época da Guerra do Peloponeso formulou os princípios da igualdade perante a lei e do individualismo político. Enfatizou também que o idioma, os costumes e a lei não têm o caráter mágico de tabus – são instituições humanas, convencionais. E insistiu que somos responsáveis por essas instituições, que devemos ter fé na razão humana, ao mesmo tempo resguardando-nos do dogmatismo: em outras palavras, que é crítico o espírito da ciência. O surgimento da própria filosofia foi uma resposta à queda da sociedade fechada e de suas crenças mágicas. Uma tentativa de substituir a perdida fé mágica por uma fé racional; modificou a tradição de transmitir uma teoria ou um mito, fundando uma tradição nova: a de desafiar teorias e mitos e de discuti-los criticamente.
Em contraste, o sonho de Platão – da unidade, da beleza e perfeição, o esteticismo, o holismo e o coletivismo – é tanto produto quanto sintoma da perda do espírito de grupo do tribalismo. É a expressão dos sentimentos dos que sofrem da tensão da civilização – nos tornamos dolorosamente conscientes das grandes imperfeições de nossa vida, das imperfeições pessoais e institucionais, do sofrimento evitável. Essa consciência aumenta a tensão da responsabilidade pessoal, de carregar a cruz de ser humano.
A lição que devemos aprender de Platão é exatamente a oposta à que ele tenta nos ensinar. A
despeito da excelência do diagnóstico sociológico, sua terapêutica é pior que o mal que tentava combater. Deter a mudança política não é o remédio; não pode trazer a felicidade. Uma vez que comecemos a confiar em nossa razão e sintamos o apelo das responsabilidades pessoais e, com estas, a responsabilidade de promover o conhecimento, não podemos retornar ao estado de submissão na magia tribal. Não há volta possível a um estado harmonioso da natureza. Se voltarmos, deveremos refazer o caminho integral – devemos retornar às feras.
AS RAÍZES ARISTOTÉLICAS DO HEGELIANISMO

Para Aristóteles, uma das causas de qualquer coisa, movimento ou mudança, é a finalidade a que tende o movimento. O Bem pode estar tanto no ponto de partida do movimento como em seu fim: a Forma ou essência de qualquer coisa em movimento torna-se idêntica ao estado final para o qual tende. A Forma ou Idéia, que é o Bem, fica no fim, em vez de estar no princípio – o otimismo substitui o pessimismo. As Idéias não mais existem separadas das coisas sensíveis: a Forma está na coisa. Toda mudança significa a realização de algumas das potencialidades inerentes à essência da coisa – sua fonte interna de mudança ou movimento.
Três doutrinas historicistas originam-se do essencialismo de Aristóteles: 1) Somente através da
história de um Estado podemos conhecer sua “essência oculta e não desenvolvida”. Essa doutrina levou ao princípio de que só podemos conhecer entidades sociais aplicando-lhes o método histórico, estudando as mutações sociais. 2) Só a mudança pode tornar aparente a essência e as potencialidades que desde o princípio eram inerentes ao objeto em mutação. Essa doutrina levou à noção historicista de um destino histórico, essencial, do qual não se pode fugir. 3) A fim de tornar-se real, a essência deve desdobrar-se na mudança.
Aristóteles distingue conhecimento de opinião. O conhecimento, ou ciência, pode ser de duas
espécies: demonstrativo ou intuitivo. O conhecimento demonstrativo é o conhecimento das “causas”. O conhecimento intuitivo consiste na apreensão da essência de uma coisa; é a fonte originadora de toda ciência, já que apreende as premissas básicas de todas as demonstrações. O ideal aristotélico do conhecimento perfeito consiste na compilação dessas definições intuitivas de todas as essências; o progresso do conhecimento consiste na gradual acumulação de definições.
Essa concepção essencialista contrasta com os métodos da ciência moderna. Embora em ciência façamos o melhor para encontrar a verdade, nunca temos segurança de havê-la alcançado. Aprendemos, de muitas decepções, que não podemos esperar uma finalidade; a não nos decepcionarmos se nossas teorias científicas forem refutadas, pois podemos, na maioria dos casos, verificar com grande confiança qual de duas teorias é a melhor. Podemos saber se estamos fazendo progresso; é esse conhecimento que nos consola da perda da ilusão de finalidade e certeza. Sabemos que nossas teorias científicas devem sempre permanecer como hipóteses. Se forem distintas, levarão a predições diferentes, que podem ser falsificadas; à base da experimentação, podemos verificar se a nova teoria leva a resultados mais satisfatórios que a anterior. Em nossa busca da verdade, substituímos a certeza científica pelo progresso científico. Essa concepção do método científico é ratificada pelo progresso da ciência, que não se desenvolveu como pensava Aristóteles, mas por um método muito mais revolucionário: progredimos pela proposição de idéias e teorias novas, e pelo abandono das antigas. Em ciência não há “conhecimento” no sentido que Platão e Aristóteles entendiam essa palavra, que implica finalidade. Em ciência, nunca temos razão suficiente para acreditar que atingimos a verdade. A concepção essencialista é simplesmente insustentável e incompatível com a ciência.

HEGEL E O NOVO TRIBALISMO

Hegel, a fonte de todo o historicismo contemporâneo, foi um seguidor direto de Heráclito, Platão e Aristóteles, o “elo perdido”, por assim dizer, entre Platão e a forma moderna de totalitarismo, que adora o Estado, a História e a Nação. A doutrina hegeliana afirma que o Estado é tudo, e o indivíduo, nada. Com Aristóteles, Hegel acredita que as Idéias são idênticas a coisas em fluxo. Estas não tendem a se afastar da Idéia, em direção à decadência; como Espeusipo e Aristóteles, a tendência é na direção contrária, para a Idéia.
As próprias essências se desenvolvem, em oposição a Platão, que originalmente as introduziu para obter um ponto fixo estável.
O historicismo de Hegel é otimista. Seu mundo em fluxo é um estado de “evolução criativa”; cada uma de suas etapas contém as precedentes, das quais se origina; e cada etapa supera todas as etapas anteriores, aproximando-se cada vez mais da perfeição. A lei geral do desenvolvimento é, assim, a do progresso.
O coletivista Hegel, como Platão, visualiza o Estado como um organismo, dotado de uma “vontade geral” coletiva rousseauniana – sua essência consciente e pensadora, sua “razão”. Esse “Espírito”, cuja “própria essência é a atividade”, é também o coletivo Espírito da Nação que forma o Estado. Conhecemos sua essência e suas “potencialidades” pelo conhecimento de sua “efetiva” história, ou melhor, através da história do seu “Espírito”.
O primeiro pilar da filosofia hegeliana é o método dialético. Como Heráclito, Hegel acredita na identidade dos opostos e sua permanente tensão. É da própria natureza da razão que se contradiga; não é uma fraqueza das faculdades humanas, mas a essência de toda racionalidade o fato de que esta opera dialeticamente com contradições e antinomias, já que é desse modo que a razão (e a ciência) se desenvolve: não somente as contradições são admissíveis, como inevitáveis e desejáveis. A própria razão é o produto da herança social e do desenvolvimento histórico dialético da Nação.
O segundo dos pilares do hegelianismo é a denominada filosofia da identidade, ela própria uma aplicação da dialética. O elo entre a dialética de Hegel e sua filosofia da identidade é a doutrina de Heráclito sobre a unidade dos opostos. Hegel adota, da doutrina de Platão, a equação Ideal = Real. Da dialética de Kant, Hegel aceita serem as Idéias algo mental, algo espiritual ou racional, o que pode expressar-se pela equação Idéia = Razão. Combinadas, essas duas equações, ou equívocos, dão-nos Real = Razão. Isso permite a Hegel afirmar que tudo que é razoável deve ser real, e tudo que é real deve ser razoável; o desenvolvimento da realidade é o mesmo da razão. E como não pode existir padrão mais alto do que o último desenvolvimento da Razão e da Idéia, tudo o que agora existe, existe por necessidade, e deve ser razoável e bom.
A filosofia da identidade, afora seu positivismo ético, implica como subproduto uma teoria da verdade: tudo que é razoável é real e, portanto, deve ser verdadeiro. A verdade se desenvolve do mesmo modo que a razão, e tudo quanto apela para a razão na sua última etapa de desenvolvimento deve também ser verdadeiro para essa etapa. A evidência, por si mesma, é o mesmo que a verdade. Desse modo, a oposição entre o que Hegel chama o “Subjetivo”, a crença, e o “Objetivo”, a verdade, transforma-se numa identidade; e essa unidade dos opostos explica também o conhecimento científico.

O DETERMINISMO SOCIOLÓGICO DE MARX

O interesse de Marx pela ciência social e pela filosofia social era fundamentalmente prático; ele via no conhecimento um meio de promover o progresso da humanidade. Apesar de seus méritos, creio que Marx foi um falso profeta do curso da história; suas profecias não se materializaram; pior, induziu muitos à crença de que a profecia histórica é o modo científico de abordar os problemas sociais. Marx é responsável pela devastadora influência do método historicista nas fileiras dos que desejam impulsionar a causa da sociedade democrática.
O marxismo é uma teoria puramente histórica, que visa predizer o curso futuro dos eventos
econômicos e do poder político, e especialmente as revoluções. Marx rejeitou qualquer tipo de mecânica social, que denunciou como utópicas e ilegítimas. Como Lênin admite, dificilmente se encontra na obra de Marx uma palavra sobre a economia socialista, à exceção de lemas inúteis como “de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo suas necessidades”.
Marx considerou sua missão liberar o socialismo do fundo sentimental, moralista e visionário. O socialismo devia passar da etapa utópica para a científica; devia basear-se no método científico de analisar causa e efeito, e na predição científica. Como admitiu que a predição no campo social é idêntica à profecia histórica, o socialismo científico deveria basear-se em um estudo das causas e dos efeitos históricos, e na profecia de seu próprio advento.
Creio ser inteiramente correta a afirmação de que o marxismo é, fundamentalmente, um método. Como tal, o marxismo deve ser submetido à prova e criticado por padrões metodológicos. Deve-se indagar se, como método, tem ou não capacidade de impulsionar a tarefa da ciência. Os padrões pelos quais devemos julgar o método marxista devem ser, portanto, de natureza prática.
A ênfase sobre a predição científica é em si mesma uma descoberta metodológica importante.
Contudo, o argumento plausível de que a ciência só pode predizer o futuro se este for predeterminado levou Marx a aderir à falsa crença de que o método científico deve estar baseado num determinismo rígido. A crença de que os termos “científico” e “determinista” estão inseparavelmente ligados persiste ainda como uma superstição, reminiscência de um tempo que ainda não passou de todo.

Não há razão para acreditar que, dentre todas as ciências, a ciência social seja capaz de revelar o que o futuro nos reserva. Essa crença na adivinhação científica não se fundamenta só no determinismo; sua outra base é a confusão entre predição científica, como a que conhecemos da física ou da astronomia, e profecia histórica de longo prazo, que prenuncia as principais tendências do desenvolvimento futuro da sociedade. Essas duas espécies de predição são muito diferentes, e o caráter científico da primeira não é de argumento em favor do caráter científico da segunda. 

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