DEUS E A EXISTÊNCIA
por Etienne Gilson
Seria, para nós, muito instrutivo sabermos os caminhos pelos
quais Tomás de Aquino chegou à apreensão de suas noções fundamentais em
Filosofia, e, pela mesma razão em Teologia. Eis algo que muito raramente
conhecemos no caso de qualquer filósofo, e que, sem dúvida ignoramos no tocante
a São Tomás. A sua reforma doutrinai liga-se a certa noção de ser elaborada por
ele próprio. Esta noção encontramo-la perfeitamente formulada no De Ente et
Essentia, escrito por volta de 1256. Tinha ele, então, 31 anos. Já no
Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, Tomás de Aquino servira-se da mesma
noção do ser, aplicando-a especialmente a Deus. Seja de 1253 ou de 1254, este
Comentário foi o seu primeiro trabalho. Pode-se dizer, por conseguinte, que,
tal como nós historiadores o conhecemos, Tomás sempre teve sua própria noção de
ser.
Ainda não se tentou fazer a história pré-tomista desta
noção. Ela foi preparada com certeza pela Metafísica de Avicena, e, através
desta, pela de Alfarabi. Sustentavam estes dois filósofos a tese de que a
existência é um complemento da substância que, por não estar incluso na sua
essência, lhe sobrevém, por assim dizer, como um acidente. Somente Deus não
recebe a existência como complemento de sua essência. Deus não tem sua própria
existência, ele é sua própria existência. Moisés Maimonides, o Rabi judeu por
quem São Tomás sempre manifestou sincero respeito, percebeu a importância
teológica e religiosa desta doutrina. E, de fato, o Deus do Antigo Testamento,
que é comum a judeus, muçulmanos e cristãos, não poderia ser melhor descrito do
que por esta mesma noção de ser que a própria Sagrada Escritura, se não
ensinara, pelo menos sugerira a filósofos e teólogos. Houve, por certo, uma
espécie de preparatio thomistica e o historiador seria o último a minimizar sua
importância. Não obstante, como se verá, a noção propriamente tomista de ser
aparece pela primeira vez nos trabalhos de São Tomás de Aquino.
Ignorando como Tomás de Aquino chegou a esta nova noção,
gostaríamos de saber ao menos como demonstrou a sua veracidade, ou, pelo menos,
como justificou o seu significado.
Aqui, novamente, em vão procuraríamos em seus escritos
teológicos ou filosóficos a justificação de sua noção de ser. Ele a utiliza com
freqüência, recorre a ela, em última análise, sempre que problemas fundamentais
estão em jogo, mas não sugere qualquer caminho através do qual se possa
esclarecer, explicar ou justificar analiticamente esta noção. Não existe
nenhuma outra noção a partir da qual se possa encontrá-la seja por indução ou
por dedução. B não é de admirar. Como o "ente" é uma noção primeira,
ou melhor, é a noção absolutamente primeira, goza da indemonstrabilidade própria
dos princípios. Ora, assim como a noção do ser pode muito bem ser
"vista", isto é, ser objeto de "intuição" mas não pode
justificar-se por uma noção anterior (pois que esta noção anterior já incluiria
o ser), assim também a noção do ser, tal como a interpreta Tomás de Aquino,
pode muito bem ser entendida, possuída, contemplada e usada como fonte de luz
na investigação da natureza da realidade, mas não pode justificar-se dedutiva
ou indutivamente por nenhuma espécie de demonstração. Neste caso, desde que
estamos lidando com o primeiro princípio, o método pode ser apenas
"ostensivo".
Duas vezes podemos seguir passo a passo nos trabalhos de
Tomás de Aquino — uma na Contra Gentiles e outra na Summa Theologiae — o seu
modo pessoal de abordar a noção do ser que está no âmago de sua concepção
metafísica da realidade. Na Contra Gentiles — cujo texto seguiremos —, partindo
da demonstração da existência de Deus concebido como o Primeiro Motor Imóvel do
mundo da natureza, Tomás estabelece sucessivamente, seguindo um método de
remoção progressiva, primeiro que Deus não tem começo nem fim: é eterno; a
seguir, que não há em Deus potência passiva, nem matéria, nada de violento ou
de não natural e nada de corpóreo. No Livro I, cap. 21, prova que Deus é sua
própria essência e, finalmente, no cap. 22, que em Deus são idênticos "ser
atual" e "essência". Esta conclusão é decisiva para a
determinação da noção tomista de ser. Efetivamente, agora sabemos que há um
ente que é "ser" e nada mais do que ser. Este ente é Deus. Assim,
portanto, se soubermos o que Deus é, estaremos seguros de saber o que é, na
realidade "puro ser". O caminho que seguiu Tomás nesta indução
progressiva consistiu em eliminar da noção da natureza divina, sucessivamente,
todos os tipos concebíveis de composição. Parece, por conseguinte, que a noção
tomista de ser poderia facilmente encontrar-se ao caso da seqüência metafísica,
que, partindo da mobilidade e mntabilidade da natureza, termina na afirmação
de" um ente tão perfeitamente simples, que a única coisa que dele se pode
dizer é que ele é.
Indubitavelmente isto é verdade, mas a questão precisa é de
saber por que Tomás de Aquino, nesta seqüência metafísica, não parou no
capítulo 21. no qual demonstrou que Deus é sua própria essência, ou, em outras
palavras, que Deus é essência. De fato, este é o ponto em que aquela
operaçãometafísica se deteria numa teologia, como a de Santo Agostinho, que
considerasse sinônimas as palavras Deus, essência, ser e imutabilidade.
Seria fácil reunir textos em que Sto. Agostinho usa estas
noções como interpretações da célebre passagem do Êxodo em que Deus,
respondendo à pergunta de Moisés, declara expressamente que o seu nome é ELE É.
Um simples trecho do "De doctrina christiana" (1, 32, 35), bastaria
para estabelecer a identidade das noções de ser e de imutabilidade na teologia
de Sto. Agostinho: "Suprema e primariamente é quem é absolutamente
imutável e quem tinha toda autoridade para dizer: eu sou aquele que sou, e:
dir-lhe-ás: QUEM É enviou-me a vós". E noutro lugar (Sermo VII, 3, 4: pl
38, 61): "Que é isto? ó Deus, ó Senhor Nosso, qual é o vosso nome? Meu
nome é,É, diz Deus. Mas significa "meu nome é É"? Significa:
Permaneço eternamente, porque não sou mutável. As coisas que mudam não são,
porque não são permanentes. Ser é ser permanente. O que muda foi algo e será
algo, mas não é, porque é mutável. Bis por que a imutabilidade de Deus deu
testemunho de ei próprio, dizendo: Eu sou Aquele que sou". Para a
equivalência de imutabilidade e essência, o texto decisivo se encontra no De Civitate
Dei, V, 2, 3; PL 4.912: "Pois Deus indubitavelmente é substância, ou,
melhor, Deus é a essência que os gregos costumavam chamar OUSIA. Como sapientia
vem de sapere e scientia de scire, assim também essentia vem de esse, E,
efetivamente, quem é mais do que aquele que disse a seu servo Moisés: Sou
Aquele que Sou e dirás aos filhos de Israel: Quem É enviou-me a vós?" (Cf.
De Civitate Dei, 11, 2; PL. 41, 350).
Tomás de Aquino poderia não ter ido além, seguindo a linha
da essência; mas ele, tomou novo caminho, quando passou do capítulo 21 ao
capítulo 22. Seria provavelmente mais exato dizer que, desde o começo, seu
itinerário metafísico estava orientado para um ponto além da essência. No
capítulo 21 tentara Tomás fazer-nos compreender, por meio de um simples exemplo,
o sentido da proposição "Deus é sua essência". Que é a essência de
umhomem tal como Sócrates, por exemplo? É humanidade. É Sócrates humanidade ? A
resposta seria quase negativa. Sócrates é um espécime particular de humanidade,
individualizado por sua própria matéria. Em suma, Sócrates é humanidade plus
algo que o faz ser o indivíduo singular que ele é. Ora, se Deus é absolutamente
simples não pode ser algo plus outra coisa. Assim, diz Tomás: "a essência
divina existe por si como um existente singular e individualizado por si
mesmo" (C. G., I, 21, 4;). Ninguém pode demonstrar mais brilhantemente a
conclusão estabelecida por Sto. Agostinho.
Mas, como vimos, o capítulo 22 vai além no caminho seguido
até então por todos os teólogos. Tomás procedeu à redução da essência ou
entidade divina, a que ele chama o "ser" ("esse") de Deus.
Deste "ser" ("esse"), de início, nada mais sabemos senão
que é aquilo a que, em Deus, tem de reduzir-se a essência (essentia) ou quidade
(quidditas). A essência de Deus, de modo algum, se distingue desse
"ser" ("esse"). Note-se ainda: desde que Tomás, no capítulo
21 argumentou que Deus é sua essência, este "ser" ("esse"),
agora, no capítulo 22, não pode ser essência outra vez. Ele é, diz Tomás,
"o nome de um ato" (C. G., I, 22, 7). Pois bem, se a essência de Deus
não fosse o seu "ser" ("esse"), não seria por si mesma;
Deus não seria por sua própria essência: seria por participação ao verdadeiro
"esse" graças ao qual ele existe (ibid. §9). O objetivo desta
demonstração é evidentemente identificar Deus com o ato sem o qual nenhuma
essência existiria. Dizer que Deus é simples significa, neste passo, que ele é
o puro atode Ser.
Nosso problema agora consiste em averiguar a origem da
noção, se pudermos. A primeira hipótese é que Tomás de Aquino a encontrou
nasEscrituras; de modo mais preciso, no texto do Êxodo a que a; abamos de nos
referir. Mas, se assim é, por que nenhum outro teólogo a teria encontrado antes
de Tomás de Aquino? Agostinho conhecia esta passagem do Êxodo e nós o vimos citá-la
mais de uma vez; sempre, no entanto, com a mesma conclusão: Eu Sou significa
sou imutável, porque ser e ser imutável são uma só e mesma coisa. Se a noção
tomista do ato de ser se encontra nas Escrituras, por que Agostinho, quando diz
que Deus é essentia, não acrescenta: isto é, no caso de Deus, o seu próprio ato
de ser? Agostinho não tem dúvida quanto à conclusão a tirar-se do texto do
Êxodo: "est EST" (Cf. ed. Skutella XIIT, 31, 6, pg. 367). Mas logo
acrescenta: Deus é É como é o bem dos bens (Phil. et Incarn., p. 26, n.° 1, cf.
pg. 13, nota 1). Se Deus houvesse ensinado de modo explícito aos homens que seu
nome era o puroato de existência, Agostinho, e muitos outros, teriam
provavelmente entendido o sentido da mensagem divina antes do século XIII.
Outra hipótese é que Tomás de Aquino, tendo já em mente sua
noção do ato de ser, leu-a no texto do Êxodo. Ora, assim como não estamos
aparelhados para negar que Tomás chegou a esta noção enquanto lia as
Escrituras, talvez mesmo enquanto as ensinava, assim também não o estamos para
negar que Tomás a descobriu primeiro no curso de suas reflexões metafísicas,
usando-a mais tarde na interpretação das Escrituras. Como já dissemos, não
sabemos qual foi o processo da descoberta desta noção, na mente de São Tomás.
Esta extraordinária descoberta metafísica está, nos seus
trabalhos, em conexão com um texto das Sagradas Escrituras, e não conseguimos
ver de que forma ele, simplesmente como filósofo, a poderia ter elaborado.
A descoberta de Tomás de Aquino é particularmente notável
porque se prende à intuição do primeiro princípio. As descobertas filosóficas
importantes têm consistido em revelar certas conseqüências ainda não percebidas
embora decorram necessariamente de princípios já conhecidos. Outro tipo de
descoberta filosófica consiste em substituir um antigo princípio por um novo,
sempre possível, principalmente se há menos interesse pela verdade do que pela
novidade. Mas a descoberta de Tomás de Aquino foi de tipo raro. Constituiu em
perceber, pela primeira vez, a profundíssima conseqüência daquilo que inúmeros
filósofos já haviam reconhecido como o primeiro princípio em filosofia.
Podemos apresentar, de diversas maneiras, o objeto desta
descoberta. Por exemplo: seria o puro fato da existência atual algo que a filosofia
devesse tomar por certo, sem mais indagação a seu respeito? Ou, ao contrário,
deveriam os filósofos tomar a existência atual como objeto de importância para
a reflexão filosófica?
Outro modo de formular a mesma questão consiste em indagar
se há algo de misterioso no fato de que exista alguma coisa em vez de nada.
Nada haverá de estranho no fato de que algo é atualmente, ou existe? Rejeitar
esta indagação não suprime o problema. Este é tão importante que da sua
resposta depende a solução dos demais problemas. Tão logo formulado, torna-se
imediatamente visível que, se na realidade alguma coisa é, ser é tão importante
que se apresenta como a condição necessária para tudo o mais. Ora, podemos
estar certos, a priori, de que aquilo que é mais importante narealidade é
também aquilo que Deus, de modo mais eminente, é. Segue-se, pois, que ao nomear
Deus, e tentar falar dEle, a primeira coisa a se compreender e se dizer, é que
Ele é Puro Ato de ser, precisamente como, na doutrina de Aristóteles, a
primeira coisa a se dizer dEle é que Ele é o Puro Ato de Pensar.
Pode-se formular a mesma conclusão, de outro modo, na
linguagem do nosso tempo, — não para fazer São Tomás afirmar o que ensinam os
nossos contemporâneos, mas, antes, na esperança de fazer nossos contemporâneos
entenderem o que o próprio São Tomás se esforçou quanto pôde para nos fazer
compreender. Digamos, neste espírito, que Deus é o Puro Ato Existencial; vale
dizer, o Ato cuja essência toda é ser, e nada mais do que ser. O mais notável,
entretanto, é que ao tentar exprimir esta verdade, as melhores palavras que nos
vêm à mente não são as que tomamos à filosofiacontemporânea : são as palavras
usadas séculos atrás pelas Escrituras, que não são de forma alguma um tratado
de Metafísica. Dizemos que o nome de Deus é ELE É, ou QUI EST, o texto sagrado,
lido com a visão metafísica de Tomás de Aquino, dá a formulação mais perfeita
desta nova noção deDeus. Mais admirável ainda, se possível, é a resposta do
Cristo aos que lhe perguntavam se ele realmente queria dizer que era mais velho
do que Abraão e do que os profetas. Cristo não respondeu : antes de Abraão
existisse eu era: Ele respondeu: antes que Abraão existisse, eu Sou. (João, 8,
58).
Isto não é filosofia, evidentemente; pode ajudar,
entretanto, a perceber o verdadeiro sentido daquilo que, de outro modo,
permaneceria fórmula abstrata: em Deus, a essência não é de modo algum distinta
do Puro Ato de Ser.
Tinha Tomás de Aquino, neste ponto, notável predecessor: o
filósofo árabe Avicena. Em certo sentido, Avicena fora ainda mais longe do que
o próprio Tomás. Ele simplesmente negava que Deus tivesse essência. O Deus de
Avicena é antes de mais nada o Ser Necessário. Como tudo o que acontece a
qualquer ente, acontece em virtude de sua essência, um ser necessário não tem
essência. Nem existe em virtude de sua essência, pois não tem essência de modo
algum. "Primus igitur non habet quidditatem" (Avicena, Metafísica,
tr. V, oap. 4).
Eis um modo de falar que deve ter seduzido o espírito de
Tomás de Aquino. Em rigor, dizer que Deus não tem essência era exprimir de
maneira feliz o sentido metafísico das palavras da Escritura: EU SOU, e meu
nome é Aquele que É. Tomás de Aquino provavelmente sentiu-se tentado a
seguirAvicena neste ponto, e não é de admirar que ao menos um de seus
historiadores tenha atribuído a Tomás a doutrina aviceneana de que Deus não
temessência. Na realidade, Tomás jamais usou estas palavras. Ora, ele as lera
em Avicena, e teria sido perfeitamente capaz de forjá-las sem o auxílio de
ninguém. Por que, então, se absteve sempre de dizer que Deus não tem essência?
Pelo que sabemos, Ele próprio nunca explicou esta
dificuldade. O que dizemos a respeito, dizemo-lo portanto, sob nossa
responsabilidade, mas existe ao menos uma explicação razoável, que se ajusta
muito bem à inspiração geral da doutrina. Segundo Tomás de Aquino, tudo o que
se diz de Deusorigina-se no conhecimento sensível, que temos dos seres naturais.
Removendo, gradativamente, das noções que formamos dos seres físicos, tudo o
que implica a mínima conotação de imperfeição, chegaremos a uma noção, por
completo purificada, de Aquele que é a absoluta perfeição de ser. Esta é uma
formulação negativa do mais positivo de todos os objetos concebíveis pela
inteligência humana. Para conferir-lhe um mínimo de conceptibilidade, Tomás
parece ter aderido com rigor à "via remotionis", defendida por
Dionisio e abertamente recomendada pelo próprio Tomás. Procedeu assim, já o
vimos, na Contra Gentiles. Depois de eliminar da noção de Deus qualificativos
como materialidade, corporeidade, composição e congêneres, Tomás atingiu o
estágio derradeiro do seu processo de purificação no momento em que, tendo
indagado se Deus é sua própria essência (C. G. I, 21), continua a investigar se
Deus é o seu próprio Ato de Ser (esse) (C. G. I, 22). A resposta, naturalmente,
teria de ser: sim, mas, até neste momento decisivo, não quer que percamos (nós
e ele próprio) o contato com a quididade das coisas sensíveis, que é o ponto de
partida necessário para toda indagação sobre Deus. Ora, para nós, saber alguma
coisa é ter resposta à questão: "que é isto?" Se Deus não tem
essência, não tem "que", e, se isto fosse verdade, a resposta à questão
"que é Deus?" seria: nada. Muitos místicos não hesitarão em falar
assim, no sentido preciso de que Deus é infinitamente diferente de todo objeto
que se pode chamar "coisa"; contudo, dizer que Deus não é coisa
alguma por certo não significa que AQUELE QUE É não é. A atitude certa a
propósito deste magno problema é permitir ao intelecto humano alcançar o limite
extremo accessível ao seu esforço depurificação, relativamente à noção de ser.
Dizer que o ser absoluto não tem essência seria torná-lo completamente
impensável. Por isso Tomás preferiu dizer que em Deus, aquilo que nos seres
materiais se chama essência, deveria denominar-se o Ato de Ser.
NA: Deve notar-se que Tomás não condenou a fórmula.
Simplesmente, absteve-se de usá-la, por razões que serão investigadas.
É ainda mais importante notar que esta posição justifica de
pronto a conseqüência que Deus não está incluído em nenhum gênero. Pois tudo o
que está num gênero tem uma essência distinta do seu ato de ser: "Aliquid
enim est, sicut Deus, cuius essentia est ipsum suum esse; et ideo inveniuntur
aliqui philosophi dicentes quod Deus non habet essentiam: quia essentia eius
non est aliud quam esse eius. Et ex hoc sequitur quod ipse non sit in genere:
quia omne quod est in genere oportet quod liabeat quidditatem praeter esse
suum; cum quidditas aut natura generis aut speciei non distinguatur seeundum
rationem nature in illis quorum est genus vel species; sed esse est in diversis
diversimode." De ente et essentia, vi, a; Marietti, pp. 17-18. — "Dicendum
quod Deus non sit in genere. . . Primo quidem, quia nihil ponitur in genere
seeundum esse suum, sed ratione quidditatis suae; quod ex hoc patet quia esse
uniuscuiusque est ei proprium, et distinctum ab esse cuiuslibet alterius rei;
sed ratio substantiae potest esse communis: propter hoc etiam Philosophus dicit
(III Metaph., com. 10), quod ens non est genus. Deus autem est ipsum suum esse:
unde non potest esse in genere." De potentia. q. vii, a. 3, Eesp.
Marietti, II, p. 193.
É o que faz Tomás quando tem de exprimir esta verdade
suprema . Em lugar de dizer, como poderia fazê-lo, que Deus não tem quididade,
habitualmente diz que em Deus a essência ou quididade em nada se distingue do
ser. Assim, se perguntássemos: "que é Deus?" teríamos a resposta:Deus
é seu próprio Ato de Ser. E verdadeiramente, Ele nada mais é do que o Puro Ato
de Ser. Ora, poder-se-ia propor ainda outra questão: por que então não dizer
que Deus não tem essência ? A resposta seria: se pela palavra essência se
entende algo diferente, por mínimo que seja do puro ato deexistência atual de
Deus, então é exato dizer que Deus não tem essência. Segundo Dionisio o
Areopagita, e muitos místicos, Deus é então apreendido como Aquele que, por sua
transcedência, não é coisa alguma, e que, nesta vida é o mais elevado objeto de
contemplação espiritual. Mas opensamento metafísico permanece muito abaixo do
plano da vida mística. Serve-se de palavras e é da essência da linguagem que as
palavras tenham sentido. Por isso, segundo cremos, Tomás de Aquino não quer que
percamos totalmente contato com a realidade finita até quando tentamos exprimir
a verdade que separa Deus de tudo o mais.
Usar comparação tomada ao mundo dos sentidos, como meio de
acesso a uma verdade metafísica, está bem dentro do espírito do tomismo.
Suponhamos, então, que empreendemos uma viagem marítima. Começamos por nos
separar de tudo o que havemos de deixar atrás, pessoas e coisas. Encontramo-nos
a bordo, no universo estranhamente limitado, que será o nosso por alguns dias;
mas nada acontece de decisivo, até que chega o último momento, quando o navio
finalmente corta as amarras e parte. Estamos no mar, e se nos perguntarem onde
nos encontramos, não poderemos responder citando o nome de nenhum lugar
preciso. Tudo o que podemos dizer é a quantas mil milhas longe da terra nos
encontramos. Algo parecido ocorre quanto tentamos falar de Deus. Enquanto temos
uma noção precisa do que Ele não é, nossas palavras guardam certo sentido
positivo, mas quando chegamos à questão: "é Deus distinto do seu próprio
ato de ser?", então é a hora de nosso intelecto cortar as amarras, perder
contato com aterra firme da essência, ou quididade, e lançar-se no oceano
infinito da pura atualidade existencial. Não podemos dizer mais onde estamos,
porque não há marcos terrestres onde não há mais terra. Mas lembramo-nos ainda
de que havia uma terra, e é em relação a ela que podemos talvez nos atribuir
uma espécie de localização instável. Qual a última coisa de que um ente
concreto teria de despojar-se para obter simplicidade total? A sua essência,
naturalmente. Mas se o fizesse, deixaria de existir. Que resta de um homem, se
deixar de ser homem? Mas, falando de Deus, pelo modo com que nós,homens podemos
fazê-lo, precisamos de ambas as coisas: abandonar a essência para alcançar o
alto mar do puro Ser, e retê-la, a fim de conservar um objeto inteligível. É o
que fazemos quando, à questão: " onde estamos agora ?", respondemos:
estamos além da essência. Não estamos além do ser: ao contrário, estamos além
da essência, no próprio coração do ser.
Dizer estas coisas de Deus é apontar, por meio de um último
ato de remoção, o mais eminente de todos os objetos do entendimento humano. Se
disséssemos que Deus é isto, nossa proposição traria a conseqüência de que Deus
não é aquilo. Ao contrário, dizemos que Deus não é isto nem aquilo,
implicitamente afirmamos que nada há que Deus não seja. Se disséssemos : Deus é
aquilo que está além de todo pensamento, porque é o UM, teríamos de negar-lhe
verdade, inteligibilidade, e, em suma, tudo o que não fosse absoluta unidade.
Se disséssemos que Deus é, essencialmente,
ohttp://sophia.hyperlogos.info/tiki-index.php?page=Bem" >Bem deveríamos
então negar-lhe tudo o que não é da essência da bondade enquanto bondade, ou
por outra, como ocorreu a certos teólogos, teríamos de introduzir na sua
essência uma espécie de "composição formal" dificilmente compatível
com a sua absoluta simplicidade. Ao contrário, afirmar que Deus é somente ser,
é negar-lhe tudo o que, sendo uma determinação do ser, é uma negação do ser.
O ato de ser, que se afirma de Deus, é inteiramente
diferente da noção abstrata de ser, que formamos quando concebemos o ser na sua
completa generalidade. Ser, neste último sentido, é o mais geral de todos os
conceitos. É um universal, isto é, um ente de razão como aqueles que constituem
o objeto da Lógica, Tais entes não têm outra existência a não ser a das noções
presentes ao entendimento. Uma das regras fundamentais seguintes aos conceitos,
na Lógica, é que a sua compreensão está em razão inversa de sua extensão. Uma
vez que a noção de ser abrange tudo o que é, tem ela uma extensão ilimitada;
conseqüentemente, sua compreensão é tão limitada quanto possível. Na realidade,
a sua compreensão é nula. Quando Hegel partiu de semelhante noção do ser, no
começo de sua Lógica, notou imediatamente que, depois de dizer que o ser é a
sua segunda afirmação teria de ser, necessariamente, que o ser não é. Com
efeito, que significa a noção de ser? Visto que esta noção como tal não designa
nenhum ser ou modo de ser em particular, ela nada mais significa do que o
simples fato de que o objeto ao qual ela se atribui é alguma coisa,
Não se dá o mesmo no caso do puro Ato de Ser. Longe de
significar uma noção abstrata e universal sem realidade extra mental, a noção
do puro "esse" indica um ser realmente subsistente, cuja perfeição
não tem limites. Deus é absolutamente distinto de todos os outros entes, cada
um dos quais tem uma essência distinta de sua existência. E isso porque é Ele
mesmo o seu próprio ato de ser. A pureza existencial de Deus o individualiza,
por assim dizer, e o coloca à parte de tudo o mais. A noção de Deus é tal que a
sua extensão se limita estritamente a um único ser, isto é, somente aDeus, ao
passo que a compreensão é infinita.
NA: "Ad quartum dicendum quod esse divinum, quod est
eius substantia, non est esse commmune, sed est esse distinctum a quolibet alio
esse. Unde per ipsum suum esse Deus differt a quolibet alio ente." Qu.
Disp. de potentia, vii, 2, resp. Marietti, II, 192.
É característico da doutrina de São Tomás de Aquino que nela
não se põe o problema da infinidade de Deus. Se ocorrer surgir, a resposta à
questão não exige a introdução de qualquer nova noção além da do puro ato de
ser. Vê-se isso particularmente no artigo da Summa em que Tomás responde à
questão "se Deus é infinito". "Infinito" é termo
tipicamente negativo. Significa que o objeto ao qual se aplica não é finito.
Ora, ser absolutamente não finito é a mesma coisa que não ser sujeito a nenhuma
limitação. O ente que é o Ato absoluto de Ser é, pela mesma razão,
absolutamente livre de todas as limitações. O sentido primitivo da palavra
"absoluto" é, de modo preciso; livre de qualificação, de restrição,
de limite. Como o ato que Deus é, não é recebido em nada que o possa determinar,
qualificar ou limitar, — ser e ser infinito são, para Deus, uma só e mesma
coisa, conclui Tomás de Aquin» (De Potentia, q. 1, a 2, Resp.; Marietti, II,
11).
NA: "Unde patet quod Deus est infinitus: quod sic
videri potest. Esse enim hominis terminatum est ad hominis speciem, quia est
receptum in natura speciei humanae; et simile est de esse equi, vei cuiuslibet
creaturae. Esse autem Dei, cum non sit in aliquo receptum, sed sit esgepurum,
non limitatur ad aliquem modum perfectionis essendi, sed totum esse in se
habet; et sic, sicut esse in universali acceptum ad infinita se potest
extendere, ita divinum esse infinitum est; et ex hoc patet quod virtus vel
potentia sua activa, est infinita".
Por conseguinte, o ato de ser de Deus é aquilo que nos
outros entes chamaríamos essência. Se há uma pedra de toque na doutrina de São
Tomás de Aquino, tanto em Filosofia, como em Teologia, é bem esta. Nem podemos
hesitar quanto à importância que o próprio Tomás lhe atribui. Há certo calor
nas palavras com que ele terminou o cap. 22, livro I, da Summa Contra Gentiles:
"Esta sublime verdade Moisés aprendeu-a do Senhor. QuandoMoisés perguntou
ao Senhor: "Se os filhos de Israel me disseram: qual é o nome dEle? — que
lhes direi?", o Senhor respondeu: Eu Sou Aquele que Sou. Dirás aos filhos
de Israel: Aquele Que É enviou-me a vós" (Êxodo, 3: 13, 14). Por aí o
Senhor mostrou que o seu nome próprio é Aquele Que É. Ora, os nomes foram criados
para significar as naturezas ou essências das coisas. Portanto, o ser divino é
a essência ou natureza de Deus" (C. G., I, 22, 10).
A solenidade do tom é inequívoca. Advertido pela sua
curiosidade natural, um historiador de espírito perquiridor bem poderia
perguntar-se por queTomás de Aquino, que habitualmente confirma suas
conclusões, ao fim de cada capítulo,, citando nomes autorizados, ao fazê-lo
para estas conclusões, não encontrou nenhum outro para citar, depois da própria
Escritura, a não ser "alguns doutores católicos, que professaram a mesma
verdade". Um deles é Hilário de Poitiers; outro, Boécio. Há casos em que
Tomás não hesita em referir-se à autoridade de algum filósofo, principalmente
Aristóteles, como concordes com a doutrina da Revelação. Não é este o caso,
aqui. Tudo se passa como se Tomás se sentisse de tal modo no íntimo da verdade
cristã sobre Deus, que qualquer tentativa de confirmá-la por alguma posição
filosófica seria debilitar este ensino realmente "sublime". O primeiro
princípio da Metafísica estava, aqui, em jogo; e, uma vez que a sabedoria
humana fora transformada pela base, todas as noções fundamentais que se seguem
imediatamente ao primeiro princípio estavam também destinadas a assumir novos e
mais profundos significados.
A primeira dessas noções fundamentais que submeteremos ao
nosso exame é a de criação.
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