terça-feira, 2 de outubro de 2012

André Comte-Sponwille sobre a sabedoria.




 A SABEDORIA 

Ainda  que pudéssemos  ser  sapientes  do  saber  alheio, pelo  menos  sabios  só podemos  ser  da  nossa própria  sabedoria.  MONTAIGNE 


A etimologia é bem clara: pbilosophía, em grego, é o amor ou a busca da sabedoria. Mas o que é sabedoria? Umsaber? É o sentido ordinário da palavra, tanto entre os gregos (sophià) como entre os  latinos (sapientià), e é o que a maioria dos filósofos, desde Heráclito, não parou de confirmar. Para Platão como para Spinoza, para os estóicos como para Descartes ou Kant, para Epicuro como para Montaigne ou Alain, a sabedoria tem de fato muito a ver com o pensamento, com a inteligência, com o conhecimento, em suma, com certo saber. Mas é um saber muito particular, que nenhuma ciência expõe, que nenhuma determinação valida, que nenhum laboratório poderia testar ou atestar,  enfim que

nenhum diploma sanciona. É que não se trata de teoria mas de prática. Não de provas, mas de provações. Não de experimentações, mas de exercícios. Não de ciência, mas de vida.

Os gregos às vezes opunham a sabedoria teórica ou contemplativa (sopbia) à sabedoria prática (phronesis). Mas uma é inseparável da outra, ou antes, a verdadeira sabedoria seria a conjunção das duas. É o que dá razão à língua francesa, que não as distingue. "Julgar bem para fazer bem", dizia

Descartes, e é isso a própria sabedoria. Que uns sejam mais dotados para a contemplação e outros para a ação, é verossímil. Mas nenhum dom basta para a sabedoria: estes terão de aprender a ver, aqueles a querer. A inteligência não basta.

A cultura não basta. A habilidade não basta. "A sabedoria não pode ser nem uma ciência nem uma técnica", sublinhava Aristóteles: ela tem por objeto menos o que é verdadeiro ou eficaz do que o que é bom, para si e para os outros. Um saber? Claro. Mas é um saber viver.É o que distingue a sabedoria da filosofia, que seria antes um saber pensar. Mas a filosofia só tem sentido na medida em que nos aproxima da sabedoria: trata-se de pensar melhor para viver melhor, e somente isso é filosofar de verdade. "A filosofia é aquela que nos instrui para viver", escreve Montaigne. Quer dizer então que não sabemos? Claro: é

por não sermos sábios que necessitamos de filosofar! A sabedoria é a meta; a filosofia, o caminho.

Faz-nos pensar em Aragon: "Quando se aprende a viver já é tarde demais..." Uma idéia próxima se  encontrava em Montaigne ("Ensinam-nos a viver quando a vida já passou"), porém mais tônica: é que o autor dos Ensaios via aí menos uma fatalidade da condição humana do que um erro de educação, que se podia e se devia corrigir. Por que esperar para filosofar, se a vida não espera? "Cem escolares pegaram sífilis", escreve maliciosamente Montaigne, "antes de terem chegado à lição de Aristóteles, da temperança..." A sífilis é do domínio da filosofia? Claro que não, quanto a seus remédios ou à sua prevenção. Mas a sexualidade sim, e a prudência, e o prazer, e o amor, e a morte... Como a medicina ou a profilaxia poderiam bastar? Como poderiam fazer as vezes de sabedoria? "Tu não morres porque estás doente, morres porque estás vivo", lê-se em outra passagem dos Ensaios. Portanto é preciso aprender a morrer, aprender a viver, e isso é a própria filosofia. "É um grande erro", continua Montaigne, "pintá-la inacessível às crianças, e com uma fisionomia carrancuda, carregada  e terrível. Quem a mascarou com essa falsa fisionomia, pálida e hedionda? Não há nada 
mais alegre, mais galhofeiro, mais divertido, e por pouco não digo pândego." Azar dos que confundem filosofia e erudição, rigor e chatice, sabedoria e poeira. Se a vida é assim tão difícil, frágil, perigosa, preciosa, como de fato é, é mais uma razão para filosofar o mais cedo possível ("a infância encontra nela sua lição, como as outras idades"), em outras palavras, para aprender a viver, na medida do possível, antes que seja tarde demais.
É para isso que serve a filosofia, e é por isso que ela pode servir a qualquer idade, pelo menos a partir do momento em que a criança tem um bom domínio do pensamento e da linguagem. Por que  as crianças que fazem matemática, física, história, solfejo seriam proibidas de fazer filosofia? Esses estudantes que se preparam para ser médicos ou engenheiros, por que não fariam também? E esses adultos mergulhados em seus trabalhos ou em suas preocupações, quando arranjarão tempo de voltar-se para ela ou de voltar a ela?
Que é preciso ganhar a vida, está claro; mas isso não exime de vivê-la. Como fazê-lo de uma maneira inteligente sem se dar ao tempo de refletir, sozinho ou acompanhado, sem se 
interrogar, sem raciocinar, sem argumentar, da maneira mais radical e mais rigorosa possível, enfim, sem se preocupar com o que outros, mais preparados ou mais talentosos que a
média, pensaram? Eu citava, a propósito da arte, a observação de Malraux: "É nos museus que se aprende a pintar." E nos livros de filosofia, diria eu igualmente, que se aprende a filosofar. Mas o objetivo não é a filosofia, ainda menos escrever livros. O objetivo é uma vida mais lúcida, mais livre, nais feliz - mais sábia. Quem pretenderia, nesse caminho, ião poder progredir? Montaigne, em "Da instituição das crianças" (Ensaios, I, 26), cita a mesma fórmula de Horácio, de me Kant fará a divisa das Luzes: "Sapere ande, incipe. ouse iaber, ouse ser sábio, comece!" Por que esperar mais?  Por rue diferir a felicidade? Nunca é cedo demais nem tarde demais para filosofar, era mais ou menos o que dizia Epicuro, já que nunca é cedo demais nem tarde demais para ser
feliz. Mas a mesma razão indica claramente que quanto mais cedo melhor. Que sabedoria? Os filósofos divergem a esse respeito, :omo a respeito de tudo. Uma sabedoria do prazer, como
em Epicuro? Da vontade, como nos estóicos? Do silêncio, como nos céticos? Do conhecimento e do amor, como em Spinoza? Do dever e da esperança, como em Kant? Cada um que forje sua opinião, que poderá tomar emprestada de diversas escolas. É por isso que é preciso filosofar por conta própria: porque ninguém pode pensar nem viver em nosso lugar. Mas numa coisa os filósofos, quase todos em todo caso, concordam: na idéia de que a sabedoria se reconhece
por certa felicidade, por certa serenidade, digamos por certa paz interior, mas alegre e lúcida, a qual é inseparável de um exercício rigoroso da razão. É o contrário da angústia, é o contrário da loucura, é o contrário da infelicidade. É por isso que a sabedoria é necessária. É por isso que é necessário filosofar. Porque não sabemos viver. Porque é preciso aprender. Porque a angústia, a loucura ou a infelicidade não param de nos ameaçar. "O mal mais contrário à sabedoria", escrevia Alain, "é
exatamente a tolice." Dito isso, por diferença, a que devemos tender: à vida mais inteligente possível. Mas a inteligência não basta para tal. Mas os livros não bastam para tal. Para
que pensar tanto, se é para viver tão pouco? Quanta inteligência nas ciências, na economia, na filosofia! E quantas tolices, muitas vezes, na vida dos cientistas, dos homens de negócio, dos filósofos... A inteligência só se aproxima da sabedoria na medida em que transforma nossa existência, em que a ilumina, em que a guia. Não se trata de inventar sistemas.
Não basta manejar conceitos, ou estes não passam de meios. O objetivo, o único, é pensar e viver um pouco melhor, ou um pouco menos mal.
Admirável fórmula de Marco Aurélio: "Se os deuses deliberaram sobre mim e sobre o que deve acontecer comigo, fizeram-no sabiamente. Mas, ainda que não deliberem sobre nada do que nos concerne ou não existam, é-me permitido deliberar sobre mim mesmo e procurar o que me é útil." A sabedoria não é uma santidade. A filosofia não é nem uma religião nem uma moral. É minha própria vida que se trata de salvar, não a dos outros. É meu próprio interesse que se trata de defender, não o de Deus ou da humanidade.
Pelo menos é esse o ponto de partida. Que eu possa no caminho também encontrar Deus, é possível; a humanidade, é provável. Mas, enfim, não vou por isso renunciar a esta vida que me é dada, nem à minha liberdade, nem à minha lucidez, nem à minha felicidade. Como viver? É essa a questão com que a filosofia, desde seu começo, se depara. A sabedoria seria a resposta, mas encarnada, mas vivida, mas em ato: cada qual que invente a sua. E aí que a ética, que é uma arte de viver, se distingue da moral, que só concerne aos nossos deveres. Que as duas possam e devam andar juntas, é óbvio. Perguntar-se como viver também é perguntar-se que importância atribuir a seus deveres. Mas nem por isso os dois escopos deixam de ser
diferentes. A moral responde à pergunta: "Que devo fazer?" A ética, à pergunta: "Como viver?" A moral culmina na virtude ou na santidade; a ética, na sabedoria ou na felicidade. Não matar, não roubar, não mentir? Muito bem. mas quem se contentaria com isso? Quem veria nisso uma felicidade suficiente? uma liberdade suficiente? uma salvação suficiente? "Não pegar aids não é uma meta suficiente na existência",
dizia-me um amigo. É claro que ele tinha razão. Mas o mesmo vale para não matar, não roubar ou não mentir. Nenhum "não" basta, é por isso que necessitamos da sabedoria: porque a moral não basta, porque o dever não basta, porque a virtude não basta. A moral manda; mas quem se contentaria com obedecer? A moral diz não, mas quem se contentaria com suas proibições? Mais vale o amor. Mais vale o conhecimento. Mais vale a liberdade. Trata-se de dizer sim. sim a si, sim aos outros, sim ao mundo, sim a tudo, e é isso que a sabedoria significa. "Amorfati", dizia Nietzsche após os estóicos: "Não querer nada além do que é, nem no passado, nem no futuro, nem nos séculos dos séculos; não se contentar com suportar o inelutável, menos ainda dissimulá-lo a si próprio - todo idealismo é uma maneira de mentir a si mesmo diante da necessidade -, mas amá-lo." Isso não impede a revolta. Isso não impede o combate. Dizer sim ao mundo é também dizer sim à sua própria revolta, que faz parte dele, à sua ação, que faz parte dele. Vejam Carnus ou Cavaillès. Transformar o real? Isso supõe antes de mais nada que se tome o real como ele é. Fazer advir o
que ainda não é? Isso supõe antes de mais nada que se trabalhe sobre o que é. Ninguém pode agir de outro modo. Ninguém pode ter sucesso de outro modo. A sabedoria não é uma utopia. Nenhuma utopia é sábia. O mundo não é para ser sonhado, mas transformado. A sabedoria? É antes de mais nada certa relação com a verdade e com a ação, uma lucidez tônica, um conhecimento em ato, e ativo. Ver as coisas como elas são; saber o que se quer. Não se mentir. Não fingir. "Não bancar o ator trágico", dizia Marco Aurélio. Co-
nhecer e aceitar. Compreender e transformar. Resistir e superar. Porque ninguém pode enfrentar primeiro nada além daquilo mesmo cuja existência aceita. Como se tratar, se não se aceitar que se está doente? Como combater a injustiça, se não reconhecer que ela existe? O real é para pegar ou largar, e ninguém pode transformá-lo se antes não pegá-lo. É o espírito do estoicismo: aceitar o que não depende de nós; fazer o que depende. É o espírito do spinozismo: conhecer, compreender, agir. É também o espírito dos sá-
bios do Ocidente, por exemplo, Prajnanpad: "Ver e aceitar o que é, depois, se necessário, tentar mudá-lo." O sábio é um homem de ação, enquanto nós normalmente só sabemos esperar ou tremer. Ele enfrenta o que é, enquanto nós normalmente só sabemos esperar o que ainda não é e lamentar o que não é ou já não é. Ainda Prajnanpad: "O que está acabado tornou-se passado; não existe agora. O que deve acontecer está no futuro e não existe agora. E então? O que existe? O que é aqui e agora. Nada mais... Fiquem no presente: ajam, ajam, ajam!" Isso é viver a vida, em vez de esperar viver. E realizar nossa salvação, tanto quanto somos
capazes, em vez de esperá-la. A sabedoria? O máximo de felicidade, no máximo de lucidez. É a vida boa, como diziam os gregos, mas uma vida que seja humana, em outras palavras, responsável e digna.
Gozar? Sem dúvida. Regozijar-se? O máximo que pudermos. Mas não de qualquer jeito. Não a qualquer preço. "Tudo o que proporciona alegria é bom", dizia Spinoza; no entanto nem todas as alegrias se equivalem. "Todo prazer é um bem", dizia Epicuro. Isso não quer dizer que todos eles mereçam ser buscados, nem mesmo que todos eles sejam aceitáveis. É preciso escolher portanto, comparar as vanta-
gens e as desvantagens, como dizia ainda Epicuro, em outras palavras, julgar. É para isso que serve a sabedoria. É também para isso que serve, e por isso mesmo, a filosofia. Não se filosofa para passar o tempo, nem para se valorizar, nem para brincar com os conceitos: filosofa-se para salvar a própria pele e a própria alma. A sabedoria é essa salvação, não para uma outra vida mas para esta. Somos capazes? Completamente não, sem dúvida. Mas não é um motivo para renunciarmos a nos aproximar dela. Ninguém é sábio por inteiro; mas quem se resignaria a ser totalmente louco? Se você quer ir em frente, diziam os estóicos, precisa saber aonde vai. A sabedoria é a meta: a vida é a meta, mas uma vida que fosse mais feliz e mais lúcida; a felicidade é a meta, más que seria vivida na verdade. Cuidado, porém, para não fazer da sabedoria um ideal a mais, uma esperança a mais, uma utopia a mais, que nos separaria do real. A sabedoria não é outra vida, que seria necessário esperar ou alcançar. Ela é a verdade desta, que é preciso conhecer e amar. Porque ela é amável? Não necessariamente, nem sempre. Mas para que seja. "O sinal mais expresso da sabedoria", dizia Montaigne, "é um júbilo constante; seu estado é como das coisas acima da lua: sempre sereno." Eu também poderia citar Sócrates, Epicuro ("é preciso rir enquanto se filosofa..."), Descartes,
Spinoza, Diderot ou Alain... Todos eles disseram que a sabedoria está do lado do prazer, da alegria, da ação, do amor. E que a sorte não basta. Não é porque o sábio é mais feliz do que nós que ele ama mais a vida. E porque ele a ama mais que é mais feliz. Quanto a nós, que não somos sábios, que não passamos de aprendizes de sabedoria, isto é, filósofos, resta-nos aprender a viver, aprender a pensar, aprender a amar. Nunca pararemos de aprender, e é por isso que sempre precisamos filosofar. Isso requer muito esforço, mas também traz muitas alegrias. "Em todas as outras ocupações", escrevia Epicuro, "o gozo vem depois dos trabalhos feitos penosamente; mas, na filosofia, o prazer anda de mãos dadas com o conhecimento: porque não é depois de ter aprendido que se goza o que se sabe, mas aprender e gozar andam juntos."
Tenha confiança: a verdade não é o fim do caminho; ela é o próprio caminho.
Fonte: SPONVILLE, André Comte, Apresentação da Filosofia

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