quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Bem Platônico no Banquete




PLATÃO


5 de Julho de 2005 ⋅ História da filosofia 
Leandro Anésio Coelho
O Banquete, de Platão
Lisboa: Edições 70, 2002, 104 pp.

O  Banquete não  pode ser  considerado um  diálogo;  tende muito  mais para  um duelo  no  qual  os  participantes  pretendem  fazer,  cada  qual,  o  melhor  discurso sobre a amizade. O início da obra lembra-nos outras de Platão: alguns estão em caminho  para  a  cidade  quando  são  interrompidos  por  outros  e  se  colocam  a discutir  determinado  assunto.  Desta  mesma  forma  acontece  em  A  República  (Sócrates  e  Glauco  estão descendo  do  Pireu  e  terminam  na  casa  de  Céfalo)  e  no  Fedro  (Fedro,  depois  de  ouvir  Lísias,  encontra
Sócrates  no caminho  para a  cidade e  se colocam  a debater  o discurso  retórico de  Lísias). No  Banquete, Apolodoro  e  seu  Companheiro  (a  obra  não  revela  o  nome  dele)  estão  indo  de  casa,  em  Falero,  para  a cidade quando são interrompidos por Glauco: Recentemente, quando eu subia de casa, em Falero, para a cidade, um conhecido que me tinha visto  por  de  trás,  gritou  de  longe,  em  tom  de  brincadeira:  Ó  cidadão  de  Falero,  de  nome Apolodoro!  Por  que  não  esperas?  Então,  me  detive  para  esperá-lo.  E  ele:  Apolodoro,  me falou, andava à tua procura, porque desejo obter informações precisas a respeito da conversa de Agatão com Sócrates, Alcibíades e os demais convivas do banquete dado por ele, em que proferiram vários discursos sobre o amor. (172a-b) Aristodemo  havia  estado  presente  no  banquete  no  qual  se  deu  a  discussão  a  respeito  da  amizade.  Esse contou  o  que  ali  se  passara  para  Apolodoro  e  esse,  por  último,  se  empenha  em  relatar  o  acontecido  na presença do seu Companheiro e de Glauco.
Assim  como em  A  República, O  Banquete tem  lugar  certo e  público  identificável:  ocorreu na  casa  de Agatão, discípulo de Sócrates. Lá discursaram sobre o amor, ou sobre a amizade (philia), esses dois, além de Fedro, Pausânias, Erixímaco (o médico) e Aristófanes (o poeta).
O que realmente se passou na casa de Agatão começa a ser relatado por Apolodoro em 174a. Sócrates chega  por  último,  quando  todos  já  estavam  acomodados  e  o  banquete  já  havia  se  iniciado,  estando  pelo meio (cf. 175c). Frente ao banquete, Pausânias lembra que deveriam beber com moderação: faz referência ao dia anterior, no qual havia bebido exageradamente e ficado abalado fisicamente.
Os discursos sobre o amor iniciam com Fedro: "iniciou o seu discurso [Fedro] declarando que Eros era uma divindade poderosa e admirável, tanto entre os homens como entre os deuses, por várias razões, mas, antes de tudo, pelo nascimento." (178a) Fedro é o primeiro, e por isso pai do discurso, a falar sobre o deus Eros:  ele  condena  o  ofício  dos  poetas  que  têm  por missão  cantar  hinos  aos  deuses  mas  se  esquecem  de Eros. Fedro, no seu discurso, faz a justificação moral de Eros, mas não investiga a fundo sua essência e suas formas. De qualquer forma, é devido à fala desse discípulo de Sócrates que toda a discussão se inicia. Com o intuito de elevar Eros, Fedro encerra seu discurso dizendo que esse é o deus mais antigo, mais respeitável e o mais "autorizado" (cf. 180b) a levar o homem à posse das virtudes e da felicidade, nesta vida e depois da morte!
Sucede  Fedro  no  discurso  em  defesa  de  Eros  outro  discípulo,  agora  Pausânias:  censura  a  falta  de21/06/12 Crítica: O Banquete precisão do  discurso anterior e  tenta uma definição  concreta. Para  ele, existem dois  tipos de Eros  para os homens, um vulgar e repudiável, outro sendo uma força educadora.
O Eros usual e corrente, o instinto e irrefletido e vulgar, é vil e repudiável, porque tende à mera
satisfação dos apetites sensuais; em contrapartida, o outro é de origem divina e o impulsiona o
zelo de servir ao verdadeiro bem e à perfeição do amado. Este segundo Eros pretende ser uma
força  educadora,  não  só  no  sentido  negativo  de  desviar  os  amantes  das  ações  vis,  o  que  o discurso de Fedro realça, mas também em toda a sua essência, como força que serve ao amigo
e o ajuda a expandir a sua personalidade. (JAEGER, 2001, p. 727)
O  amor  para  Pausânias  é  sinônimo  de  liberdade  para  o homem.  O  amante  faz  coisas  para  o  amado  que escravo algum aceitaria fazer, tal como se jogar no chão ou se deitar na porta da moradia do amado. O amor é louvável, que denota a liberdade do indivíduo em fazer ou não determinadas coisas e, segundo Pausânias, é ratificado pelas leis, como ele mesmo nos diz:
O amante  faz tudo isso  [serviços para o  amado] com  certa graça, o  que lhe é  permitido pela
liberdade de nossos  costumes, sem incidir na  menor censura de ninguém, como  se se tratasse
de  um  ato  louvabilíssimo.  E  o  mais  de  admirar  é  que,  no  dizer  do  povo,  somente  o  amante obtém  perdão dos  deuses,  em caso  de  perjuro. Não  há  juras de  amor,  dizem. Desse  modo, tanto  os  deuses  como  os  homens  concedem  plena  liberdade  a  quem  ama,  o  que  nossas  leis confirmam. (183b)
As atitudes de quem ama não o faz parecer ridículo e, se em agressão aos deuses, é logo perdoado pela sua condição de amante. O amor aproxima o sujeito das virtudes.
Assim finda  Pausânias e,  de acordo com  a disposição dos  homens no  banquete e da  forma organizada que  ia  seguindo  a  discussão,  seria  a  vez  de  Aristófanes.  Mas  esse  se  encontrava  em  soluços  e  passou  a palavra para o próximo, Erixímaco. Em seguida, a vez de discursar voltaria para Aristófanes.
O médico Erixímaco propõe ao amigo em soluço três "remédios" para o problema:
1.  Que prenda a respiração por um momento;
2.  Se não resolver, que gargareje um pouco de água;
3.  Se mesmo assim não resolver, que cheire algo que irrite o nariz. Assim, repetindo essa etapa por duas vezes, Erixímaco garante que o soluço, por mais forte que seja, passará.
É interessante observar a aplicação  da medicina na época de Sócrates e de se  perceber o interesse de um médico pela filosofia e pelas idéias de Sócrates.
O  discurso  de  Erixímaco  é  aquele  que  transpassa  o  homem  e  atinge  a  natureza.  Com  a  visão  de  um médico,  visão  naturalista,  Eros  aparece  aqui  como  um  deus  poderoso,  princípio  e  devir  de  todo  o  físico, "como potência criadora daquele amor primogênito que tudo anima e penetra, com o seu ritmo periódico de pleno e de vazio." (JAEGER, 2001, p. 730)
Erixímaco  vê  a  existência  de  um  Eros  bom  e  um  ruim.  É  o  Eros  bom  que  promove  o  bem-estar  e  a harmonia, estando em todas as esferas do cosmo e das artes humanas. Ele compara a medicina e a música: a primeira deve fazer existir a harmonia entre as forças físicas antagônicas e segunda deve combinar tons altos e  baixos  para  formar  uma  sinfonia.  A  idéia  de  harmonia,  tão  presente  em  A  República,  aparece  aqui novamente, até mesmo quando o médico grego diz que o homem deve sim consentir o prazer, mas não deve se deixar corromper por esse.
Findada a fala  do médico Erixímaco, Aristófanes  já tem por cessado o  seu soluço e começa  a expor o que tem a falar sobre o amor.
O  discurso  do  poeta  Aristófanes  é  menos  extenso  que  o  do  Erixímaco,  mas  maior  que  o  de  Fedro.
Percebe-se que  a discussão vai avançando  e se aproximando  de definições mais  claras para o que  seria o21/06/12 Crítica: O Banquete amor, ou a amizade, ou Eros. Para Aristófanes, Eros é um anseio, uma busca metafísica do homem por uma totalidade do Ser, inacessível sempre  à natureza do indivíduo. Uma das coisas que  revela isso é a saudade dos amantes que  desejam não se separar  em tempo algum: não se  trata somente de algo  corporal, mas de algo que une as suas almas ou, dizendo de outra forma, complemento que uma alma busca na outra. Diz-nos
Aristófanes:
Quando  acontece encontrar  alguém a  sua metade  verdadeira, de  um ou  de outro  sexo, ficam
ambos  tomados  de  um  sentimento  maravilhoso  de  confiança,  intimidade  e  amor,  sem  que  se decidam  a separar-se,  por assim  dizer, um  só momento.  Essas pessoas,  que passam  juntas a
vida,  são,  precisamente, as  que  não  sabem  dizer  o que  uma  espera  da  outra.  [...] E  a  razão disso  é  que  primitivamente  era  homogêneo.  A  saudade  desse  todo  e  o  empenho  de
restabelecê-lo é o que denominamos amor. (192b-e) Não  se  deve  esquecer  que  Aristófanes  é  poeta  e  apresenta  uma  visão  mais  romantizada  da  definição  de Eros, de amor e amizade. Ele quer deixar evidente que não se trata de apenas uma conexão corporal, muito
mais de essência e de complementaridade.
Não é, evidentemente, a união física que faz com que um sinta um prazer tão grande com a presença do outro  e a  ela  aspire  com tanta  força,  mas  é indubitavelmente  uma  coisa  diferente o  que  a  alma de  ambos quer, uma coisa que ela não pode exprimir e que só palpita nela como obscura intuição do que é a solução do enigma da sua vida. (JAEGER, 2001, p. 732.)
Aristófanes  termina  seu  discurso sobre  o  amor  de  forma  belíssima,  profetizando  que o  homem  só  terá uma vida feliz se tomado por Eros:
Falo  em  tese,  tanto  do  homem  como  da  mulher,  para  afirmar  que  nossa  espécie  só  poderá  ser  feliz quando realizarmos plenamente a finalidade do amor e cada um de nós encontrar o seu verdadeiro amado, retornando, assim, à sua primeira natureza. (193c)
Terminado  Aristófanes,  o  leitor  tem  pela  frente  dois  discursos:  o  de  Agatão  e  Sócrates.  Esses  dois começam a discutir para saber quem vai falar primeiro. Sócrates não perde a oportunidade para lançar sua ironia: diz ter uma posição temerosa, falar sobre o amor depois do belo discurso que provavelmente Agatão proferirá. Fedro reorganiza o banquete (a ordem dos discursos) e coloca Agatão para discursar.
Diz ele ser necessário tratar primeiro da natureza do deus e para depois tratar de seus benefícios; Eros é o deus mais bem-aventurado, o mais belo e melhor. O discurso de Agatão é o menos psicológico, o menos relacionado  com a  alma. Ele  limita-se a  descrever Eros  e suas  características. Jaeger  muito bem  resume o discurso de Agatão sobre Eros:
Conforme  Ágaton  o  descreve,  Eros  é  o  mais  feliz,  o  mais  formoso  e  o  melhor  de  todos  os deuses. É jovem, fino e delicado, e só mora em locais floridos e perfumados. Sobre ele nunca
põe as mãos a coação, pois o seu reino é o da vontade pura e livre. Possui todas as virtudes: a
justiça,  a prudência,  a  bravura e  a  sabedoria. É  um grande  poeta  e ensina  os  outros a  sê-lo.
Desde que Eros pisou o Olimpo, o trono dos  deuses passou de terrífico a belo. Foi ele quem
ensinou  à  maioria dos  imortais  as  suas  artes.  E o  entusiasta  adorador  do  deus de  Eros,  hino capaz de competir com qualquer hino em verso, tanto pelo equilíbrio harmônico da composição como pela sonoridade musical. (JAEGER, 2001, p. 734)
O grande  momento do  Banquete, e  talvez o  mais esperado,  é quando  Sócrates passa  a discursar  sobre o amor. Para ele, ao contrário de Agatão, Eros não é o próprio belo, mas aspira-o, tem o desejo de possuir algo. Lembra que quem ama deseja possuir aquilo que ama.
Sócrates faz uso do mito de Diotima: segundo ele, em determinado tempo, havia perguntado à profetisa Diotima, de  Mantinéia, coisas  sobre Eros.  Isso revela  que o discurso  de Sócrates  aparece não  como uma sabedoria dele, mas como uma verdade que ele desvendou. De acordo com esse mito, Eros é filho de Poros21/06/12 Crítica: O Banquete (riqueza) e  de Penia  (Pobreza). Isso coloca  Eros em uma  posição intermediária:  ele não é  nem feio  e nem belo, nem participa da bem-aventurança, característica essencial da divindade. Eros é um ser duplo, herdado
da diferença de seus pais, o que o coloca numa posição intermediária.
O Eros de Platão revelado por Sócrates no Banquete é o próprio filósofo: está na posição intermediária, entre o saber  e a ignorância, é  aquele que aspira algo.  O Eros em Platão  é a aspiração do  ser humano ao bem.
O  Eros  socrático  é  o  anseio  de  quem  se  sabe  imperfeito  por  se  formar  espiritualmente  a  si próprio, com os olhos sempre fitos na Idéia. É, em rigor, o que Platão entende por "filosofia": a
aspiração de conseguir modelar dentro do homem o verdadeiro Homem. (Id. Ibid., p. 740)
O discurso de Diotima, na fala de Sócrates, está na tradição grega e coloca na idéia de Eros toda a atividade de criação espiritual. Eros é um poder educador e que matem unido todo o cosmo espiritual, isso porque ele é a aspiração comum a todo homem de buscar e se apossar por completo do belo.
Recordemos  que  Diotima definia  acima  a  essência do  Eros  como  a aspiração  a  apropriar-se
'para  sempre'  do  Bem.  [...]  o  Bem  constitui  o  amor  humano  de  si  próprio,  no  seu  mais  alto sentido, então é evidente que  o objeto sobre o qual ele recai, o  eternamente belo e bom, não
pode ser senão a substância deste mesmo eu. (Id. Ibid., p. 744-746)
Banquete  encerra  com  a  chegada  de  Alcibíades  e  seu  bando:  todos  bêbados.  Alcibíades  põe  fim  aos louvores a Eros  e inicia elogios a  Sócrates. A passagem final  de Banquete pode ser  despercebida em uma leitura corrente, mas é de grande significado. Com o encerramento das honrarias a Eros e o início dos elogios a Sócrates, esse encarna o próprio Eros, ou seja, encarna a filosofia. Se não bastasse, Alcibíades anuncia ter grande amor por Sócrates: como pode um jovem de beleza exuberante fazer elogios e anunciar o seu amor
(philia)  a  um  velho  tão  desfeito  como  Sócrates?  Insere-se  aí  a  valoração  da  filosofia  e  um  novo  valor:  a beleza interior superior à beleza exterior, perecível.
O Banquete trata da amizade, do amor e é um dos diálogos de Platão da categoria política. Mas como a discussão sobre a amizade pode inserir essa obra na problemática política?
Para  Platão,  a  amizade  é  uma  força  educadora  e  nexo  que  mantém  o  Estado.  A  amizade  é  "forma fundamental  de  toda  comunidade  humana  que  não  seja  puramente  natural,  mas  sim  uma  comunidade espiritual e ética. " Não é possível existir uma comunidade que não seja baseada na amizade, pois essa tende para aquilo que é o bem e este une os homens. O bem é aquilo que é supremo, está impresso na alma, é o primeiro amado, aquilo que permite a admiração pelas demais coisas, em outras palavras, antes de tudo vem o bem, para o qual o ser humano deve voltar-se, aquilo que tudo une, ente unificador.
Depois de tantas exposições a respeito de Eros no Banquete, começando por Fedro, depois Pausânias, Erixímaco,  Aristófanes  e  Agatão,  Sócrates  bem  o  caracteriza,  como  compêndio  da  aspiração  humana  ao bem.
Ao contrário do que diziam seus discípulos, a amizade (ou amor, representado pelo deus Eros) não é o próprio belo e próprio bem. Eros é originado de duas oposições, filho da riqueza e da beleza. Isso o coloca numa situação intermediária,  não fazendo estar de  nenhum lado oposto e extremo.  A posição intermediária de Eros atribui-lhe movimento, sendo o mesmo movimento do homem em busca do bem supremo.
O bem é o que há de mais supremo, é o divino, como Platão expressa literalmente em A República e no próprio Banquete. É a forma unificadora, é o que harmoniza e unifica o cosmos e o homem; é o que todo ser humano deve buscar.
Toda forma de sociedade deve se voltar também para o bem e essa busca do bem, do supremo e divino, Platão a caracteriza como amizade, como Eros.
Por isso dizemos que Eros (philia, amor e amizade) é movimento, a busca incessante do homem pelo bem e que tanto o homem quanto a sociedade não pode existir sem esse movimento em direção ao que o bom e belo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário