domingo, 30 de setembro de 2012

O Sentido da Vida








O Sentido da Vida por Fernando Savater






«Um dos motivos de ridículo mais justificados em que costumam incorrer os filósofos é o de pretenderem competir com a religião na procura redentora do sentido da vida. É que a pergunta por esse "sentido" é já por si religiosa e a única coisa que a filosofia pode fazer quanto a essa questão é mostrar – tal como pretendo fazer agora - essa religiosidade e tentar reposicionar a pergunta de outra forma para que fique filosoficamente válida. Quando se diz estar a procurar - ou ter encontrado! - o sentido da vida, a que tipo de "sentido" nos estamos a referir? Dizemos que tem "sentido" aquilo que significa algo por meio de outra coisa ou que foi concebido de acordo com determinado fim. O sentido de uma palavra ou frase é o que ela querdizer, o sentido de um sinal é o que quer indicar (uma direcção, a categoria de uma pessoa, etc.) ou do que quer avisar (um perigo, a hora de se levantar, a passagem de peões, etc.); o sentido de um objecto é aquilo para o que se pretende que sirva (comer a sopa, matar o inimigo, falar com alguém afastado, etc.); o sentido de uma obra de arte é o que o seu autor quer expressar (uma forma de beleza, a representação do real, a insatisfação diante do real, a ilusão do ideal, etc.); o sentido de um comportamento ou de uma instituição é o que se pretende conseguir através dela (amor, segurança, diversão, riqueza, ordem, justiça, etc.).
Seja como for, o que interessa para determinar o sentido de qualquer coisa é a intenção que o anima. Os símbolos, obras, condutas e instituições humanas estão cheios do sentido que as nossas intenções lhes conferem, do mesmo modo que os comportamentos dos animais ou até os tropismos das plantas ou dos infusórios. Em todos os casos, a intenção está ligada à vida, a conservá-la, reproduzi-la, diversificá-la, etc. Onde não há vida deixa também de haver intenção e portanto deixa de haver sentido: podemos explicar as causas de uma inundação, de um terramoto ou de um amanhecer, mas não o seu "sentido". Portanto, se as intenções vitais são a única resposta inteligível à pergunta pelo sentido, como poderia ter "sentido" a própria vida? Se todas as intenções remetem como última referência para a vida, que "intenção" poderia ter a própria vida no seu conjunto?
O que é próprio do "sentido" de alguma coisa é que remete intencionalmente para outra coisa que não ela própria: para os propósitos conscientes do sujeito, para os seus instintos e, em último caso, para a autoconservação, auto-regulação e propagação da vida. Mas se nos perguntamos "que quer a vida?", as únicas respostas possíveis - viver, viver mais - trazem-nos de novo para a própria vida sobre a qual perguntamos. Para encontrar o sentido da vida devemos procurar "outra coisa", algo que não seja a vida nem esteja vivo, algo para além da vida. Suponhamos que respondemos "o sentido da vida orgânica é o pleno desenvolvimento do universo inorgânico do qual brotou". Atribuir "intenções" ao inorgânico parece bastante abusivo, pode fazer-se apenas estendendo tanto o significado da palavra "intenção" que nos desconcerta, mas admitamo-lo por um momento. A pergunta imediata é: e qual é o sentido do universo inorgânico? Para responder a isto de modo não auto-referente (evitando dizer "a intenção do universo é continuar a ser universo cada vez mais", por exemplo) temos de nos referir a algo que não faça parte do próprio universo isto é, da natureza tal como a conhecemos, algo "sobrenatural", o que é apelar verdadeiramente para o desconhecido, porque ninguém sabe realmente com que se poderia parecer algo "sobrenatural". Tinha razão Wittgenstein no seuTractatus logico-philosophicus, outra das obras-primas da filosofia deste século, quando disse: "O sentido do mundo tem de se encontrar fora do mundo" (6, 41). Muito bem, mas onde? Terá o mundo um "fora"? (Ver capítulo quinto.) A pergunta sobre o sentido acaba onde acaba o mundo ou poder-se-á continuar a perguntar pelo sentido "mais além"?
O que caracteriza a mentalidade religiosa (por oposição directa à filosófica) não é responder "Deus" à pergunta sobre o sentido ou intenção do universo: o que é propriamente religioso é acreditar que, depois de dada tão sublime resposta, já está justificado deixar de perguntar. Graças a Deus as coisas têm sentido, mas seria ímpio perguntar que sentido tem então Deus. E, no entanto, de um ponto de vista filosófico, a pergunta sobre o sentido de Deus é tão razoável e urgente como a que pretende revelar o sentido do mundo ou o sentido da vida. Se essa pergunta não se pode fazer ou, em nome do Grande Enigma Divino, é suportável não responder a ela ("Deus é o sentido e a pequenez humana nada mais pode saber d'Ele para além disso", etc.) então teria valido o mesmo ficarmos conformados muito antes. Poderíamos ter aceite à partida, por exemplo, a lição daqueles dois versos de O guardador de rebanhos que Fernando Pessoa escreveu:

as coisas não têm significado mas existência,
as coisas são o único sentido oculto das coisas
Deus é uma das explicações para o sentido da vida.
Aceitar que Deus seja o Sentido Supremo, o que dá Sentido a todos os Sentidos, é um acordo com a obscuridade ainda mais conformista do que responder que o sentido de todos os sentidos é a intencionalidade vital ou a intenção humana. Pelo menos existem razões filosóficas para não ampliar para além da vida a pergunta sobre o sentido, isto é, para lá do uso habitual da palavra "intenção": depois de ultrapassada essa barreira já não há porque se deter nem porque se contentar nunca. O religioso não é tanto querer ir para além como acreditar que depois está justificado "travar". Alguns filósofos tentaram com grandes respostas sistemáticas justificar também uma "travagem" semelhante à da religião, quer seja recorrendo ao sobrenatural ou sem chegar a isso. E habitualmente encararam as suas respostas de modo tão dogmático como qualquer pontífice ou inquisidor (ainda que, geralmente, com menos forças repressivas ao seu serviço para castigar os hereges). Merecem o que Cioran anota nos seus Cahiers, publicados postumamente: "Um sistema filosófico é como uma religião, mas mais tola.”
Se a vida não tem "sentido" (pelo mesmo motivo que todos os outros "sentidos" remetem mediata ou imediatamente para a vida), deveremos concluir desoladamente que a vida é absurda? Nem pouco mais ou menos. Chamamos "absurdo" ao que deveria ter sentido mas não tem, não ao que - por cair fora do âmbito do intencional - não "tem de" ter um sentido. Do mesmo modo, dizemos que um homem ou um animal é "cego" quando não vê, mas não podemos dizer, a não ser metaforicamente, que uma pedra seja "cega": porque o homem ou o animal "deveriam" ver segundo a sua condição natural, enquanto que a vista não faz parte do que podemos pedir a uma pedra. Não é absurdo que a vida no seu conjunto não tenha sentido, porque não conhecemos intenções fora das vitais, e para lá do campo do intencional a pergunta pelo sentido... não tem sentido! O que é realmente "absurdo" não é que a vida não tenha sentido, mas empenhar-se em que o tenha de ter.
Na verdade, a procura de um "sentido" para a vida não se preocupa pela vida em geral nem pelo "mundo" em abstracto, mas pela vida humana e pelo mundo em que nós habitamos e sofremos. Ao perguntar se a vida tem sentido, o que queremos saber é se os nossos esforços morais serão recompensados, se vale a pena trabalhar honradamente e respeitar o próximo ou se seria o mesmo entregar-se a vícios criminosos, em suma, se nos espera algo para lá e fora da vida ou apenas o túmulo, como parece evidente. Um dos pensadores que levantou a questão com maior crueza é precisamente alguém habitualmente tão pouco cruel como Kant. No fim da Crítica da Razão[1] fala do homem recto (apresenta como exemplo, nada por acaso, a Espinosa) que está convencido de que não existe Deus nem vida futura. Como fará então para justificar o seu próprio compromisso moral? Por muito boa vontade que desenvolva, os seus sucessos serão sempre limitados e nunca evitarão completamente que o engano, a violência e a inveja continuem a agir à sua vontade sem olhar a nada entre os homens. Tanto ele como os restantes homens justos com que se encontrar - por muito dignos que sejam de obter a felicidade - serão tratados pela imparcial natureza do mesmo modo que os malvados e estarão submetidos "a todos os males da miséria, das doenças, de uma morte prematura, tal como os outros animais da Terra, e continuarão a está-lo até que a Terra profunda os guarde a todos (justos ou não, que isso aqui vale o mesmo) e os volte a fazer desaparecer, a eles que podiam julgar ser o fim final da criação, no abismo do caos informe da matéria de onde foram tirados". Ao constatar este panorama tão pouco animador, a única defesa - segundo Kant - que resta à pessoa decente para salvaguardar a sua rectidão e não a considerar uma preocupação estéril é aceitar a existência de um Deus que seja o criador moral do mundo, garantindo assim um "sentido" ultra mundano feliz para a boa vontade, cá em baixo tão mal retribuída.
À partida não serei eu quem tome de ânimo leve o que pensou sobre este assunto uma inteligência tão preclara e um espírito tão honrado como Kant. Só me atrevo a realçar a possibilidade de uma linha de reflexão alternativa, que também conta com defensores ilustres (julgo que maioritários na filosofia posterior a Kant). De facto, não é por se comportar eticamente e por lutar para que exista mais solidariedade e justiça no mundo humano que nenhum homem ou nenhuma mulher consegue escapar ao destino comum que a nossa condição mortal nos reserva. Também nenhum esforço, por mais recto que seja, libertará definitivamente a nossa convivência de engano e violência, possibilidades sempre abertas à liberdade de cada um e demasiadas vezes favorecidas por estruturas socioeconómicas desviantes. Mas implicará isto necessariamente que o projecto moral seja sem sentido e supérfluo, a não ser que alguma sanção sobrenatural o avalize contra a própria morte? O homem recto (e prudente!) quer viver melhor, não escapar à sua condição mortal: tenta fazer o bom não só apesar de ter consciência de que o mau sempre existirá mas até precisamente por isso, para defender do irremediável a fragilidade preciosa do que considera preferível. Não se conduz eticamente para conseguir algum prémio ou retribuição, mas chama "ética" à forma de agir que o recompensa na sua própria actividade, fazendo-o saber-se mais razoavelmente humano e livre. Em suma, não vive para a morte ou para a eternidade mas para alcançar a plenitude da vida na brevidade do tempo. Pelo menos acredito que Espinosa teria respondido algo deste género a Kant.
Digamo-lo de outra forma. O homem sabe-se mortal e é esse destino que o desperta para a tarefa de pensar. A sua primeira reacção diante da certeza da morte (no caso de optar por não a negar e renunciar a refugiar-se na ilusão de algum tipo de existência no além) é de desespero angustiado, pelas razões bem expostas mais atrás por Kant. Que comportamento lhe ditará o desespero? Sem dúvida medo perante tudo o que o ameaça de acelerar o seu fim (privações, hostilidade, doença, etc.), acompanhado por avidez de acumular tudo o que lhe parece dar resguardo diante da morte (riqueza, segurança, proeminência social, nome, etc.) e ódio relativamente àqueles que lhe disputam esses bens e parecem obrigá-lo a partilhá-los: quem tem medo do nada, precisa de tudo. O medo, a avidez e o ódio são as características de viver desesperadamente: naturalmente também não conseguem salvar ninguém do seu destino fatal, mas, em contrapartida, introduzem omal-estar da morte em cada momento da vida, mesmo nos seus maiores gozos.
Quando se consegue sobrepor ao desespero, o ser humano constata que é tão verdade que vai morrer como que agora está vivo. Se a morte consiste em não ser nem estar de modo nenhum em parte nenhuma, todos já derrotamos a morte uma vez, a decisiva. Como? Nascendo. Não haverá morte eterna para nós, visto que jáestamos vivos, ainda vivos. E a certeza gloriosa da nossa vida não poderá ser apagada nem turvada pela certeza da morte. De modo que temos direito a perguntar, tal como no livro sagrado: "Morte, onde está a tua vitória?" A morte poderá um dia impedir que continuemos a viver, nunca que agora estejamos vivos nem que já tenhamos vivido. Pode transformar em cinza o nosso corpo, os nossos amores e as nossas obras, mas não a presença real da nossa vida. Porque haveria a morte futura de tirar importância à vida, quando a vida presente já se impôs à escura e eterna morte? Porque é que a morte, em que não somos, deveria ter mais importância para nós do que a vida que somos? Cada um pode repetir, com o poeta Lautréamont: "Não conheço outro bem que o de ter nascido. Um espírito imparcial acha-o completo.”


O ser humano, quando constata a sua presença na vida, exalta-se. E essa constatação exaltada é o que constitui a alegria. A alegria afirma e assume a vida face à morte, face ao desespero. A alegria não celebra os conteúdos concretos da vida, frequentemente atrozes, mas a própria vida porque não é a morte, porque não é "não" mas "sim", porque é tudo face ao nada. Mas a alegria não é puro êxtase, mas actividade e vai ainda mais além: luta contra o mal-estar desesperado da morte que nos contagia de medo, de avidez e de ódio. A alegria nunca poderá triunfar completamente sobre o desespero (dentro de cada um de nós coexistem o desespero e a alegria) mas também não se renderá diante dela. Baseando-nos na alegria, procuramos "aligeirar" a vida do peso opressor e nefasto da morte. O desespero só conhece o nada que ameaça cada um, enquanto que a alegria procura apoio e estende a sua simpatia activa aos nossos semelhantes, os mortais vivos. A sociedade é o laço formado por mil cumplicidades, que une aqueles que sabem que vão morrer para afirmarem juntos a presença da vida.
Se a morte é esquecimento, a sociedade será comemoração; se a morte é igualdade definitiva, a sociedade instaurará as diferenças. Se a morte é silêncio e ausência de significado, o eixo da sociedade será a linguagem que transforma tudo em significativo. Se a morte é debilidade completa, a sociedade procurará a força e a energia. Se a morte é insensibilidade, a sociedade inventará e potenciará todas as sensações, o esbanjamento "sensacional". Como a morte é o isolamento final, a sociedade instituirá a companhia do afecto e do auxílio mútuo na infelicidade. Se a morte é imobilidade, a sociedade humana premiará as viagens e a velocidade que nada consegue deter. Se a morte é a repetição do mesmo, a sociedade tentará o novo e amará os velhos gestos da vida como algo sempre novo, os novos seres como nós, a progénie indomável dos mortais. Contra a putrefacção informe cultivará a formosura, o jogo onde se pode morrer e ressuscitar muitas vezes, a metamorfose do significado. Cada sociedade é uma prótese da imortalidade para mortais, aqueles que conhecem a morte mas afrontam as suas lições desesperadamente aniquiladoras. É verdade que todos os empreendimentos sociais dos humanos estão também marcados pelo medo, pela avidez, e pelo ódio do desespero. Porém, não é o desespero que cria, mas a alegria. Nisto consiste a verdadeira lição da ética. Por isso Espinosa chamou ao homem justo "alegre" e sábio.
Em si mesmo, o mundo em que nós, humanos, nos movemos não tem qualquer sentido ou significado próprios. Como se prova? Que resiste a todos, por mais diferentes que sejam. Como notou Castoríadis "só pelo facto de não existir um significado intrínseco ao mundo os homens lhe souberam e tiveram de atribuir esta variedade extraordinária de significados extremamente heterogéneos". O sentido é algo que nós, humanos, damos à vida e ao mundo face ao abismo insignificante do caos, que vencemos aparecendo e ao qual nos submetemos morrendo. É uma grande vitória e uma derrota insignificante, porque o indivíduo morre, mas o sentido que ele quis dar à sua vida não morre... Esse fica para nós, seus companheiros de humanidade. Mas o abismo caótico também está oculto em todos os nossos significados, como o seu reverso, como a sua espessura. Vivemos sobre o abismo e conscientes dele. Por isso a razão humana não é simples fábrica de instrumentos nem se contenta em encontrar soluções para perguntas ainda não definitivas. E também é por isso que a filosofia não é apenas razão mas também imaginação criadora: "E a mediação do imaginário, do inverificável (o poético), são as possibilidades da ficção (mentira) e os saltos sintáticos para manhãs sem fim que transformaram homens e mulheres em charlatães, em censuradores, em poetas, em metafísicos, em planificadores, em profetas e em rebeldes diante da morte" (George Steiner, em Errata).
A religião promete salvar a alma e ressuscitar o corpo. Pelo contrário, a filosofia nem salva nem ressuscita mas apenas pretende levar até onde for possível a aventura do sentido do humano, a exploração dos significados. Nem rejeita a realidade da morte - como o mito - nem se deixa embuir desesperadamente pelo medo e pelo ódio que dela brotam: procura pensar os conteúdos da vida e os seus limites... como se a própria vida dependesse disso. E fá-lo com tanto afinco que às vezes provoca a troça e o sorriso.»

SAVATER, Fernando, As Perguntas da Vida, Lisboa, Pub. Dom Quixote, pp. 267-275.



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