Por Fernanda Belo Gontijo
O utilitarismo é uma teoria teleológica e consequencialista.
Defende que o fim de nossas ações é a felicidade e que o correto é definido em
função das melhores consequências, que são definidas em função da maximização
imparcial da felicidade dos afetados por nossas ações. Maximizar imparcialmente
a felicidade significa promover a maior soma de felicidade possível para todos
aqueles que sofrem de alguma maneira as consequências do que fazemos,
independente de serem pessoas por quem temos afetos ou laços consaguíneos.
Entre salvar um parente próximo de um incêndio e salvar quatro
estranhos, dado que salvar quatro estranhos maximiza a felicidade, o padrão
moral utilitarista defende que o certo é salvar os quatro estranhos ao invés de
um parente próximo. Dado que, num acidente inevitável, a única forma de salvar
a vida de todos os passageiros de um ônibus e assim maximizar a felicidade é o
auto-sacrifício do motorista, o utilitarismo defende que o correto é o
auto-sacrifício do motorista.
Por exigir decisões desse tipo, a teoria utilitarista foi e
ainda é mal compreendida e muito criticada. Para desfazer os equívocos em torno
do utilitarismo e contribuir para que fosse adequadamente compreendido e
avaliado, John Stuart Mill (1806-1873) publicou Utilitarismo (1861), que se tornou um clássico da
ética e influenciou decisivamente os utilitaristas posteriores.
A edição da Porto Editora traz uma breve nota de apresentação;
uma boa introdução que serve não só como introdução ao Utilitarismo de Mill, mas como bom texto
introdutório à teoria utilitarista como um todo; um anexo útil, no fim da
edição, com notas explicativas, bibliografia e um índice analítico.
A tradução da Gradiva foi realizada a partir da edição de 1871
(a última a ser revisada pelo autor) e traz um breve prefácio; uma boa
introdução que engloba aspectos da vida, obra e filosofia de Mill e do
utilitarismo em geral; uma breve cronologia da vida de Mill; e, no final, notas
e bibliografia.
A teoria utilitarista foi defendida pela primeira vez por Jeremy
Bentham (1748-1832) em Uma
Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação (1789). Até o Utilitarismo de Mill a teoria era baseada no
hedonismo quantitativo:
defendia-se que quanto maior a duração e intensidade dos prazeres gerados por
uma ação, mais felicidade tendia a ser gerada por essa ação.
Mill defende em cinco capítulos uma versão mais sofisticada de
utilitarismo, que se baseia no hedonismo qualitativo:
durante a avaliação de uma ação, além da intensidade e duração dos prazeres,
devemos levar em conta a qualidade dos prazeres gerados por ela. Mill os
distingue como superiores ou inferiores, de acordo com a sua natureza
intrínseca. São superiores os prazeres do intelecto, das emoções, da imaginação
e dos sentimentos morais e são inferiores os prazeres corporais. Confrontados
por indivíduos que tenham experiência de ambos, os do tipo superior
sobressaem-se como preferíveis, sendo então considerados melhores (superiores)
do que os outros.
Uma das várias objeções contra o utilitarismo que são discutidas
no livro é a acusação de que o utilitarismo é muito exigente. Mill responde a
essa objeção sustentando dois argumentos. Um é que a não ser que alguém seja um
benfeitor público, não é necessário considerar a felicidade detodas as pessoas ou de todos os seres sencientes, mas apenas dos
envolvidos na ação. Outro argumento é que abster-se de praticar ações que sejam
prejudiciais à sociedade é o que, de alguma maneira, todo sistema moral exige.
Antes desses, Mill parece defender ainda um terceiro argumento, que não é tão
claramente desenvolvido quantos os dois anteriores. Este argumento sustenta que
não é preciso agir de acordo com um senso cego de dever, o que consequentemente
nos desobrigaria de promover sempre — rígida e inquestionavelmente — a
felicidade geral.
A primeira resposta de Mill talvez seja a mais problemática.
Primeiro, porque se aceitarmos que os envolvidos nas nossas ações pertencem a
um círculo pequeno, que provavelmente envolverá aqueles com quem nos
relacionamos cotidianamente, ainda sim não escapamos da obrigação do
auto-sacrifício. Provavelmente serão muitas as situações em que será necessário
abdicar de nossa felicidade individual em função da felicidade geral do grupo
restrito que sofre as consequências de nossos atos. Segundo, porque na medida
em que muitas de nossas ações têm alcance global, como as que se referem à
preservação ambiental, o universo de indivíduos a serem considerados por nossos
atos cresce consideravelmente e, de fato, é muito difícil levar sempre em
consideração a felicidade geral numa proporção tão alargada.
Mill trata também do problema da sanção moral. Uma sanção moral
é aquilo que motiva ou obriga as pessoas a agirem moralmente; no caso de Mill,
uma fonte de prazer e dor que as leva a agir de determinado modo. Mill defende
que a sanção última do princípio de utilidade ou da maior felicidade é o
sentimento de empatia do homem para com seus pares ou sentimento social que o
leva a unir-se a eles e a ajustar os seus interesses com os interesses deles.
Esse sentimento é um tipo de sanção interna, isto é, um sentimento em nossa
mente de desaprovação perante a violação dos deveres e que nos impede de
violá-los. Por ser um sentimento, assim como outras sanções internas, poderia ser
negado. No entanto, Mill argumenta que, pelo fato de esse sentimento de empatia
possuir uma base natural, não pode ser negado. O homem possui uma natureza
social. Naturalmente, deseja unir-se aos seus semelhantes; e para que essa
união seja possível é preciso que exista igual consideração de interesses.
Assim, quanto mais imparcial for o homem e ajustar seus interesses individuais
aos interesses coletivos, melhor será para ele mesmo.
Mill tenta também apresentar uma prova a favor do utilitarismo
em três etapas: demonstrar que a felicidade é desejável; demonstrar que a
felicidade geral é desejável, demonstrar que a
felicidade é a única coisa desejável como fim, sendo tudo o resto desejável
apenas como meio ou parte desse fim. Este capítulo é alvo de muita discussão,
pois a prova que Mill apresenta parece falaciosa.
Na primeira etapa da prova, Mill usa as seguintes analogias para
demonstrar que a felicidade é desejável: assim como provamos que um objeto é
visível demonstrando que as pessoas o vêem e provamos que um som é audível
demonstrando que as pessoas o ouvem, também provamos que a felicidade é
desejável demonstrando que as pessoas a desejam. As expressões “é visível” e “é
audível” significam o mesmo que “pode ser visto” e “pode ser ouvido”. Assim, considerando
a analogia de Mill, “é desejável” deveria significar “pode ser desejado”. De
fato, a felicidade pode ser desejada e podemos prová-lo verificando que as
pessoas a desejam.
No entanto, o que Mill pretende defender é que “é desejável”
significa “é digno de ser desejado”. O que enfrenta a objeção óbvia de que o
fato de as pessoas desejarem uma coisa, neste caso, a felicidade, prova que as
pessoas a desejam, mas não prova que seja digna de ser desejada.
Uma resposta possível a essa objeção é defender que o que Mill
pretende demonstrar com a analogia dos sentidos é que recorremos à visão e à
audição para estabelecer o que é visível e o que é audível; da mesma forma,
recorremos à nossa capacidade de desejar para estabelecer o que é desejável (ou
seja, digno de ser desejado). Ao fazê-lo, descobrimos que a felicidade é
desejada e que nada há de errado nisso porque é uma coisa boa, sendo então
digna de ser desejada.
Essa resposta é problemática porque as pessoas desejam muitas
coisas prejudiciais para elas. Se o que desejamos determinar é o que é digno de
ser desejado, teremos que admitir que viver num mundo de mentiras é digno de
ser desejado porque muitas pessoas desejam viver num mundo de mentiras.
A segunda etapa da prova é demonstrar que a felicidade geral é
desejável: Mill argumenta que se cada pessoa deseja a sua própria felicidade,
consequentemente todas as pessoas desejam a felicidade de todas as pessoas.
Nesse ponto, Mill é acusado de cometer a falácia da composição, na qual se
afirma que porque as partes possuem certas propriedades, o todo também terá
tais propriedades. Mill parece estar errado porque nada garante que quem deseja
a sua própria felicidade venha a desejar a felicidade de todas as pessoas.
Outra interpretação possível do argumento de Mill é que na
medida em que as pessoas promoverem a sua própria felicidade, a felicidade
geral será promovida. Esse argumento enfrenta o problema de ser incoerente com
o utilitarismo. O utilitarismo defende a promoção imparcial da felicidade, o
que em alguns momentos implica na renúncia da felicidade individual para a
promoção da felicidade geral.
A terceira etapa da prova é demonstrar que a felicidade é a
única coisa desejável como fim e que o resto é desejável apenas como meio ou
parte para a felicidade. Mill argumenta da seguinte forma: admite o fato de as
pessoas desejarem outras coisas diferentes da felicidade, como a virtude, por
exemplo. Admite que a virtude é digna de ser desejada e que deve ser desejada
por si mesma e acrescenta que tanto a virtude quanto outros ingredientes da
felicidade (a música, a saúde, etc.) não são radicalmente distintos ou
separados da felicidade. São inegavelmente meios para ela e quanto mais
estiverem associados à felicidade, mais se tornam, além de meios, parte da
felicidade, sendo então desejados por si mesmos. Esta resposta de Mill também
não é muito convincente, pois se há coisas que são desejadas por si mesmas,
mesmo por serem associadas com a felicidade, a felicidade não pode ser
considerada a única coisa desejável. Assim, temos muitas indicações de que a
prova de Mill seja falaciosa, embora seja preciso um exame mais atento para
demonstrá-lo com maior precisão.
Mill termina o livro tentando demonstrar que o utilitarismo não
é incompatível com a justiça. Defende que a justiça não está dissociada da
felicidade e que a promoção da felicidade passa pela justiça. A relação da
justiça com o utilitarismo consiste no fato de as regras morais da justiça
estarem diretamente relacionadas ao que há de essencial na promoção da felicidade
humana. São elas que proíbem os homens de se prejudicarem, preservam a paz
entre eles e os pune quando as desrespeitam. A imparcialidade e a igualdade,
virtudes ou obrigações da justiça, são partes essenciais da utilidade. Por tudo
isso, as regras morais da justiça são mais imperativas do que as outras, embora
a sua observação admita exceções.
Pelo fato de admitir certos tipos de exceções o utilitarismo é
frequentemente acusado de ser uma teoria incompatível com a justiça. No
entanto, podemos acrescentar à argumentação de Mill que a flexibilidade do
utilitarismo pode ajudar-nos a ter uma noção mais adequada de justiça. Basear a
justiça em regras engessadas pode ser uma ponte para a injustiça. A princípio,
matar, roubar, mentir ou forçar alguém a fazer o que não quer seria errado e
injusto. No entanto, emcircunstâncias especiais pode ser mais justo revogar as regras
morais da justiça que condenam essas atitudes para evitar que uma injustiça
maior seja cometida. Há casos particulares em que pode ser necessário revogar
os princípios gerais da justiça em função da maior felicidade geral: utilizando
exemplos do próprio Mill, para salvar uma vida pode ser necessário roubar ou
tomar pela força comida, remédios ou um médico.
Muitas são as críticas levantadas contra a teoria utilitarista
de Mill. Mas ao contrário do que acontece a outras teorias que se enfraquecem
mediante as objeções que lhe são levantadas, o utilitarismo tem demonstrado
cada vez mais a sua força. A discussão em torno de seus princípios tem erguido
um debate vivo e tem impulsionado seu aperfeiçoamento e gerado versões mais
refinadas da teoria. Para compreender os fundamentos desse debate, leia-se
atentamente oUtilitarismo de
Mill, clássico obrigatório para estudiosos de ética, mas não só. Com escrita clara
e fluente, Mill discute questões importantes relacionadas com o bem-estar
individual e coletivo, que são também relevantes para a filosofia política e
para outras áreas das ciências humanas.
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