segunda-feira, 29 de julho de 2013

Que relação existe entre ciência e religião?


William Lane Craig


Em 1896, o presidente da Universidade Cornell, Andrew Dickson White, publicou um livro com o título A History of the Warfare of Science with Theology in Christedom [História da batalha da ciência com a teologia na cristandade]. Pela influência de White, a metáfora da “batalha” para descrever as relações entre a ciência e a fé cristã espalhou-se generalizadamente durante a primeira metade do século XX. Do ponto de vista cultural, a visão dominante no Ocidente — mesmo entre os cristãos — passou a ser que ciência e religião não estão aliadas na busca pela verdade, antes são adversárias.
Para dar um exemplo, alguns anos atrás debati com um filósofo da ciência na Universidade Simon Fraser, em Vancouver, Canadá, a respeito da pergunta: “Ciência e religião não são mutuamente afins?”. Ao caminhar pelo campus, vi que os estudantes que promoviam o debate tinham-no divulgado com grandes faixas e cartazes proclamando: “Ciência versus cristianismo”. Eles estavam perpetuando o mesmo tipo de mentalidade de guerra que Andrew Dickson White proclamou mais de cem anos atrás.
Mas o que aconteceu na segunda metade deste século é que historiadores e filósofos da ciência chegaram à compreensão de que a suposta história de guerra é um mito. Como Thaxton e Pearcey demonstram em seu livro recente, The Soul of Science [A alma da ciência], por mais de 300 anos, entre a ascensão da ciência moderna no século XVI até o final do século XIX, o relacionamento entre ciência e religião pode ser mais bem descrito como o de aliança. Até o final do século XIX, os cientistas eram tipicamente cristãos que não viam nenhum conflito entre a ciência e a fé deles — pessoas como Kepler, Boyle, Maxwell, Faraday, Kelvin e outros. A ideia de batalha entre a ciência e a religião é invenção relativamente recente do final do século XIX, alimentada zelosamente pelos pensadores seculares que almejavam solapar o domínio cultural do cristianismo no Ocidente e substituí-lo pelo naturalismo — a visão de que nada fora da natureza é real e de que a única maneira de descobrir a verdade é por meio da ciência. Eles foram muito bem-sucedidos em fazer prevalecer a sua agenda. Mas os filósofos da ciência, durante a segunda metade do século XX, compreenderam que a ideia de uma guerra entre ciência e teologia é flagrante banalização. O livro de White é considerado agora algo como uma piada mal contada, uma peça de propaganda unilateral e distorcida.
Agora, algumas pessoas reconhecem que ciência e religião não devem ser consideradas como inimigas, mas, apesar disso, também não entendem que devem ser consideradas como amigas. Elas afirmam que ciência e religião não são mutuamente afins, que representam dois domínios que não se sobrepõem. Às vezes ouvem-se slogans como: “Ciência lida com fatos; religião, com fé”. Mas isso é caricatura grotesca tanto da ciência como da religião. Ao sondar o universo, a ciência encontra problemas e questões de caráter filosófico que, por isso, não podem ser resolvidos cientificamente, mas podem ser iluminados por uma perspectiva teológica. Pelo mesmo critério, é simplesmente falso que a religião não faz afirmações factuais a respeito do mundo. As religiões do mundo apresentam alegações variadas e conflitantes sobre a origem e a natureza do universo e da humanidade, e não é possível que todas sejam verdadeiras. Ciência e religião, portanto, são como dois círculos que se cruzam ou se sobrepõem parcialmente; é numa área de intersecção que o diálogo acontece.
Além disso, desde o último quarto de século está em curso um florescente diálogo entre ciência e religião nos Estados Unidos e na Europa. Em discurso em uma conferência sobre a história e filosofia da termodinâmica, o notável físico britânico P. T. Landsberg passou a explorar de repente as implicações teológicas da teoria da ciência acerca da qual ele discutia e comentou que
Falar das implicações da ciência para a teologia numa reunião científica parece quebrar um tabu. Mas os que pensam assim estão desatualizados. Esse tabu foi removido ao longo dos últimos 15 anos e, ao falar sobre a interação entre ciência e teologia, estou, na verdade, indo com a maré.
Surgiram inúmeras sociedades para a promoção desse diálogo, como European Society for the Study of Science and Theology [Sociedade europeia para o estudo de ciência e teologia], Science and Religion Forum [Fórum sobre ciência e religião], Berkeley Center for Theology and Natural Science [Centro para teologia e ciência natural de Berkeley], e outros. De especial significado são as conferências atualmente patrocinadas pelo Centro de Berkeley e o Observatório do Vaticano, em que cientistas eminentes, como Stephen Hawking e Paul Davies, exploram as implicações da ciência para a teologia com notáveis teólogos como John Polkinghorne e Wolfhart Pannenberg. Não há apenas periódicos profissionais dedicados ao diálogo entre ciência e religião, como Zygon e Perspectives on Science and Christian Faith [Perspectivas sobre ciência e fé cristã], mas, mais significativamente, há periódicos seculares, como Nature e British Journal for the Philosophy of Science [Revista britânica de filosofia da ciência], que publicam artigos sobre as implicações mútuas da ciência e da teologia. A Fundação Templeton concede seu prêmio de um milhão de dólares em ciência e religião a notáveis pensadores integrativos, como Paul Davies, John Polkinghorne e George Ellis por seus trabalhos em ciência e religião. O diálogo entre ciência e teologia tornou-se tão significativo em nossos dias que tanto a Universidade de Cambridge como a Universidade de Oxford instituíram cátedras em ciência e teologia.
Partilho tudo isso para ilustrar uma questão. Os camaradas que acham que ciência e religião nada têm uma com a outra precisam entender que o gato já escapou do saco, e suponho que há pouquíssimas possibilidades de enfiá-lo de novo lá. Ciência e religião descobriram que têm interesses mútuos importantes e contribuições relevantes para fazer um ao outro, e quem não gosta disso pode optar por não tomar parte no diálogo; isso não o encerrará nem revelará que não tenha sentido.
Portanto, vamos explorar juntos as maneiras pelas quais ciência e religião servem como aliadas na busca pela verdade. Permitam-me considerar seis modos como ciência e religião são relevantes uma para outra, começando da mais geral para a mais particular.
1. A religião fornece a estrutura conceitual em que a ciência pode florescer. A ciência não é algo natural à humanidade. Como salientou o escritor de ciência Loren Eiseley, a ciência é “uma instituição cultural inventada” que exige um “solo singular” para florescer.Embora lampejos de ciência tenham aparecido entre os antigos gregos e chineses, a ciência moderna é filha da civilização europeia. Por que é assim? Isso se deve à exclusiva contribuição da fé cristã à cultura ocidental. Pois, como declara Eiseley, “é o mundo cristão que deu finalmente à luz de maneira clara e articulada o método experimental da própria ciência”.Em contraste com as religiões panteístas e animistas, o cristianismo não via o mundo como divino nem habitado por espíritos, mas, ao contrário, como produto natural de um Criador transcendente que o projetou e trouxe à existência. Assim, o mundo é um lugar racional, aberto à exploração e descoberta.
Além disso, a totalidade do empreendimento científico fundamenta-se em certos pressupostos que não podem ser provados cientificamente, mas são assegurados pela cosmovisão cristã; por exemplo: as leis da lógica, a natureza ordenada do mundo exterior, a confiabilidade de nossas faculdades cognitivas em conhecer o mundo e a objetividade dos valores morais usados na ciência. Quero salientar que a ciência sequer poderia existir sem esses pressupostos; todavia, não podem ser provados cientificamente. São pressupostos científicos que, curiosamente, são parte integrante da cosmovisão cristã. Assim, a religião é relevante para a ciência por poder fornecer uma estrutura conceitual na qual a ciência pode existir. Mais do que isso, a religião cristã historicamente forneceu de fato o arcabouço conceitual no qual a ciência moderna nasceu e foi nutrida.
2. A ciência é capaz tanto de contestar como de confirmar as afirmações da religião. Quando as religiões fazem alegações a respeito do mundo natural, elas cruzam o domínio da ciência e estão efetivamente fazendo predições que a investigação científica tanto pode confirmar quanto pode contestar. Deixem-me apresentar alguns exemplos de cada caso.
Primeiro, exemplos de refutação. Alguns exemplos são óbvios. As visões das antigas religiões grega e indiana segundo as quais o céu repousava nos ombros de Atlas ou o que mundo se firmava nas costas de uma imensa tartaruga foram facilmente desmentidas. Mas há também exemplos mais sutis.
Um dos casos mais notáveis foi a condenação de Galileu pela igreja medieval, em razão de ele afirmar que a Terra girava em torno do sol e não o sol em torno da Terra. Com base na interpretação equivocada de certas passagens bíblicas, como Salmos 93.1: “O mundo está firme, não será abalado”, os teólogos medievais negavam que a Terra se movesse. A prova científica finalmente contestou essa hipótese, e a igreja final e tardiamente veio a admitir seu erro.
Outro exemplo interessante em que a ciência refuta uma perspectiva religiosa é a afirmação de várias religiões orientais, como o taoísmo e certas formas de hinduísmo, de que o mundo é divino e, portanto, eterno. No presente século, a descoberta da expansão do universo releva que, longe de ser eterna, toda matéria e energia, e até mesmo o próprio espaço físico e o tempo, vieram a existir em determinado ponto do passado finito antes do qual nada existia. Como afirma Stephen Hawking no seu livro de 1996, The Nature of Space and Time [A natureza do espaço e do tempo], “quase todos acreditam agora que o universo, e o próprio tempo, teve começo no big bang”. Mas, se o universo veio à existência no big bang, então é temporalmente finito e contingente na sua existência e, portanto, não é eterno nem divino, como afirmavam as religiões panteístas.
Por outro lado, a ciência pode também confirmar as afirmações religiosas. Por exemplo, uma das principais doutrinas da fé judaico-cristã é que Deus criou o universo do nada num tempo finito do passado. A Bíblia começa com as palavras: “No princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). A Bíblia, portanto, ensina que o universo teve um começo. Esse ensinamento foi repudiado tanto pela filosofia grega como pelo ateísmo moderno, inclusive pelo materialismo dialético. Assim, em 1929, com a descoberta da expansão do universo, essa doutrina foi radicalmente confirmada. Ao falarem sobre o começo do universo, os físicos John Barrow e Frank Tipler explicam: “Nessa singularidade, espaço e tempo vieram à existência; literalmente, nada existia antes da singularidade, assim, se o universo se originou em tal singularidade, poderíamos ter verdadeiramente uma criação ex nihilo (do nada)”. Contrariamente a toda expectativa, a ciência, portanto, confirmou essa predição religiosa. Robert Jastrow, diretor do Instituto Goddard para Estudos Espaciais, da NASA, a vislumbra da seguinte maneira:
[O cientista] escalou as montanhas da ignorância; está para conquistar o cume mais alto; ao galgar por sobre a última rocha, é recebido por um bando de teólogos que estão sentados lá em cima há séculos.
Uma segunda confirmação científica da fé religiosa é a afirmação das grandes religiões monoteístas de que o mundo é fruto de um projeto inteligente. Os cientistas pensavam originalmente que, a despeito de quais tenham sido as condições iniciais do universo, ele finalmente evoluiria nas formas de vida complexas que vemos hoje. Mas, durante os últimos 40 anos ou mais, os cientistas têm ficado aturdidos pela descoberta de quão complexo e minucioso tem de ser o equilíbrio das condições iniciais dadas no big bang para permitir a origem e a evolução da vida inteligente no cosmos. Nos diferentes campos da física e astrofísica, cosmologia clássica, mecânica quântica e bioquímica, as descobertas têm repetidamente revelado que a existência de vida inteligente depende do equilíbrio delicado de constantes e grandezas físicas. Se qualquer uma delas fosse levemente alterada, o equilíbrio seria destruído e não existiria vida. De fato, desde o instante do seu começo, o universo parece ter sido incompreensivelmente ajustado com precisão absoluta para a produção de vida inteligente. Sabemos agora que universos desfavoráveis à vida são muitíssimo mais prováveis do que qualquer universo favorável à vida, como o nosso. Quão mais prováveis?
A resposta é que as possibilidades para o universo ser favorável à vida são tão infinitesimais quanto incompreensíveis e incalculáveis. Por exemplo, Stephen Hawking estimou que, se a velocidade de expansão do universo um segundo após o big bang tivesse sido menor do que uma parte em cem mil trilhões, o universo teria reimplodido numa bola de fogo. P. C. W. Davies calculou que as probabilidades contrárias às condições iniciais serem apropriadas à formação estelar posterior (sem a qual os planetas não poderiam existir) são, pelo menos, de dez mil quintilhões (ou o número um seguido de 22 zeros). Ele também estima que uma mudança na força de gravidade ou o enfraquecimento de apenas uma parte em 10100 teria impedido a existência de um universo favorável à vida. Está presente no big bang uma grande variedade de constantes e valores dessa ordem que têm de ser ajustados precisamente assim para que o universo permita a existência de vida. Portanto, improbabilidade é multiplicada por improbabilidade até que nossa mente fique confusa em meio a números incompreensíveis.
Não há razão física pela qual essas constantes e grandezas possuam os valores que possuem. O físico ex-agnóstico Paul Davies comenta: “Ao longo do meu labor científico, passei a acreditar com convicção cada vez maior que o universo físico está agregado com engenhosidade tão extraordinária que não consegui aceitá-la meramente como fato bruto”. Semelhantemente, Fred Hoyle observa: “A interpretação dos fatos pelo senso comum sugere que um superintelecto tem feito traquinices com a física”.
A nossa descoberta do ajuste fino do big bang favorável à vida inteligente é como a de alguém se arrastando penosamente através do Deserto de Gobi e que, ao contornar uma duna de areia, dá de cara com um arranha-céu do tamanho do Empire State Building. Descartaríamos acertadamente como loucura a sugestão de que ele se erguera ali por acaso. E consideraríamos igualmente insana a ideia de que qualquer combinação de partículas de areia nesse lugar é improvável e, portanto, não há nada para ser explicado.
Por que isso? Porque o arranha-céu manifesta uma complexidade que não está presente nas combinações aleatórias de areia. Mas por que a complexidade do edifício nos impacta como especial? John Leslie afirma que é porque há uma explicação evidente para essa construção complexa, não sugerida por uma mera combinação aleatória de grãos de areia, ou seja, o projeto inteligente. Da mesma maneira, conclui Leslie, o ajuste fino e preciso das condições iniciais do universo favorável à vida aponta a explicação notável do projeto inteligente.
Assim, a ciência tanto pode contestar como confirmar as reivindicações da religião.
3. A ciência encontra problemas metafísicos que a religião pode ajudar a resolver. A ciência tem uma sede insaciável pela explicação. Mas, no final, ela esgota o limite de sua capacidade explanatória. Por exemplo, ao explicar por que existem várias coisas no universo, a ciência defronta-se numa última análise com a questão da existência do próprio universo. Note-se que é indispensável que seja uma indagação a respeito da existência temporal do universo. Mesmo que o espaço-tempo não tenha começo nem fim, ainda assim podemos questionar por que ele existe. O físico David Park pondera: “Quanto à razão por que existe o espaço-tempo, isso se evidencia como uma pergunta científica perfeitamente boa, mas ninguém sabe como respondê-la”.
Nesse ponto, a teologia pode ajudar. Os teístas tradicionais entendem Deus como um ser cuja inexistência é impossível e que é o Criador do mundo contingente de espaço e tempo. Portanto, quem acredita em Deus dispõe dos recursos para matar a sede da ciência pela explicação definitiva. Podemos apresentar esse arrazoado na forma de um argumento simples:
1. Tudo que existe tem uma explicação para a sua existência (tanto pela necessidade da sua própria natureza quanto por causas externas).
2. Se o universo tem uma explicação para a sua existência, essa explicação é Deus.
3. O universo existe.
4. Logo, a explicação para a existência do universo é Deus.
4. A religião pode ajudar a decidir entre teorias científicas. Lawrence Sklar, notável filósofo da ciência, destaca que “a adoção de uma teoria científica em lugar de outra, às vezes em casos realmente cruciais, fundamenta-se principalmente tanto em [...] pressupostos filosóficos como em dados concretos [...]”. De maneira especial nos casos em que duas teorias conflitantes são empiricamente equivalentes, de sorte que não é possível escolher entre elas com base nas evidências, os interesses metafísicos, inclusive os interesses religiosos, entram em jogo.
Um exemplo excelente é a teoria especial da relatividade. Há duas maneiras de interpretar o núcleo matemático da relatividade especial. Segundo a interpretação de Einstein, não existe um “agora” absoluto no mundo; antes, o agora é relativo a diferentes observadores em movimento. Se eu e você estamos nos movendo em relação um ao outro, então, o que é agora para mim não é agora para você. Mas, de acordo com a interpretação de H. A. Lorentz, existe um agora absoluto no mundo, mas só não podemos ter certeza de quaiseventos no mundo estão ocorrendo agora, porque o movimento afeta nossos instrumentos de medição. Relógios em movimento funcionam devagar e os instrumentos de medição se contraem quando em movimento. As interpretações einsteinianas e lorentzianas são empiricamente equivalentes; não seria possível realizar nenhuma experiência para decidir entre elas. Mas quero afirmar que, se Deus existe, Lorentz estava certo. Eis minha argumentação:
1. Se Deus existe, então Deus está no tempo.
Isso é verdadeiro porque Deus está realmente relacionado ao mundo como a causa para o efeito. Mas a causa de um efeito temporal deve existir antes ou ao mesmo tempo em que seu efeito. Portanto, Deus tem de estar no tempo.
2. Se Deus está no tempo, então existe um observador privilegiado.
Uma vez que Deus transcende o mundo e é a causa da existência de tudo no mundo, a sua perspectiva acerca do mundo é a verdadeira.
3. Se existe um observador privilegiado, então existe um agora absoluto.
Visto que Deus é um observador privilegiado, o seu “agora” é privilegiado. Assim, existe um agora absoluto, exatamente como alegava Lorentz.
Essa é de fato uma conclusão espantosa. Mas estou firmemente convencido de que, se Deus existe, então a teoria da relatividade lorentziana está certa, e não a einsteiniana. É difícil de imaginar de que maneira a religião poderia ter alguma relevância maior do que essa para a ciência, para mostrar que uma teoria está errada e a outra, certa.
5. A religião pode ampliar a capacidade explanatória da ciência. Um dos pilares da visão científica contemporânea do mundo é a evolução da complexidade biológica a partir de formas de vidas mais primitivas. Desastrosamente, a síntese neodarwinista atual parece apresentar explicação deficiente para esclarecer o surgimento gradual da complexidade biológica. Em primeiro lugar, os mecanismos neodarwinistas de mutação aleatória e seleção natural funcionam demasiadamente devagar para produzir, sem ajuda, vida senciente. Em seu princípio cosmológico antrópico, Barrow e Tipler listam dez fases na evolução do Homo sapiens, incluindo estágios como o código genético baseado no DNA, a origem da mitocôndria, a origem da fotossíntese, o desenvolvimento da respiração aeróbica, e assim por diante, cada um deles tão improvável que, antes que tivessem ocorrido, o sol teria deixado de ser uma estrela de sequência principal e incinerado a terra. Eles relatam que, “entre os evolucionistas, desenvolveu-se o consenso geral de que a evolução da vida inteligente, comparável em capacidade de processamento de informação à do Homo sapiens, é tão improvável que parece não ser possível de ter ocorrido em nenhum planeta de todo o universo visível”. Mas, se assim for, não se pode deixar de imaginar por que, sem um compromisso com o naturalismo, deveríamos pensar que ela se desenvolveu por acaso, sem auxílio, neste planeta? Em segundo lugar, a mutação aleatória e seleção natural não conseguem explicar a origem de sistemas complexos irredutíveis. Em seu recente livroDarwin’s Black Box [A caixa preta de Darwin], o microbiologista Michael Behe explica que certos sistemas celulares, como os cílios das células ou o sistema de transporte de proteínas, são como máquinas microscópicas incrivelmente complicadas que só funcionam se todas as partes estiverem presentes e em operação. Dentro da síntese neodarwinista não há o entendimento de como esses sistemas complexos irredutíveis sejam capazes de evoluir por mutação aleatória e seleção natural. Quanto a eles, a teoria evolucionária atual tem capacidade explanatória nula. De acordo com Behe, porém, há uma explicação familiar adequada responsável pela complexidade irredutível, uma que, em outros contextos, empregamos sem a menor hesitação: projeto inteligente. “A vida na Terra, em seu nível mais fundamental, em seus componentes mais básicos”, conclui ele, “é produto de atividade inteligente”. A evolução gradual da complexidade biológica é mais bem explicada se houver uma causa inteligente por trás do processo, em vez de somente mecanismos cegos isolados. Assim, o teísta dispõe de recursos explanatórios que faltam ao naturalista.
6. A ciência pode estabelecer uma premissa num argumento que tenha conclusão com importância religiosa. O teólogo medieval Tomás de Aquino pressupunha sempre a eternidade do universo em todas as suas discussões a favor da existência de Deus, visto que assumir a existência inicial do universo facilitava demais as coisas para o teísta. “Se o mundo e o movimento tiveram um começo”, disse ele, “alguma causa tem de ser claramente postulada para essa origem do mundo e do movimento” (Summa contra gentiles 1.13.30). Além disso, simplesmente não havia nenhum modo empírico de provar a finitude passada do universo durante a Idade Média. Mas a aplicação da teoria geral da relatividade à cosmologia e a descoberta da expansão do universo no presente século parecem ter deixado cair no colo do teólogo filosófico exatamente a premissa que faltava a um argumento vitorioso a favor da existência de Deus. Agora, portanto, ele pode argumentar da seguinte maneira:
1. Tudo que começa a existir tem uma causa.
2. O universo começou a existir.
3. Logo, o universo tem uma causa.
A premissa (2) é uma declaração neutra do ponto de vista religioso e pode ser encontrada em quase qualquer texto sobre astronomia e astrofísica. Todavia, ele coloca o ateu numa situação desconfortável. Porque, assim como insta Anthony Kenny da Universidade de Oxford, “o proponente da teoria do big bang, ao menos se for ateu, tem de acreditar que [...] o universo veio do nada e sem nenhuma razão”.

Mas, certamente, isso é impossível na perspectiva metafísica. Do nada, nada surge. Então, por que o universo existe em vez de exatamente nada? É plausível que deve ter havido uma causa que trouxe o universo à existência. Ora, pela própria natureza do caso, como a causa do espaço e do tempo, essa causa tem de ser um ser incausado, imutável, atemporal e imaterial com poder inimaginável, o qual criou o universo. Além disso, eu afirmaria, ele deve ser também pessoal. Por que outra razão uma causa atemporal faria surgir um efeito temporal como o universo? Se a causa fosse um conjunto de condições suficientes e necessárias, então a causa jamais poderia existir sem o efeito. Se a causa fosse eternamente presente, então o efeito também seria eternamente presente. A única maneira para que a causa seja atemporal e o efeito comece no tempo é a causa ser um agente pessoal que decide livremente criar um efeito no tempo sem qualquer condição determinante anterior. Assim, somos levados não meramente à causa transcendente do universo, mas ao seu criador pessoal.
Tudo isso não é para formular um juízo simplista e ingênuo, como “A ciência prova que Deus existe”, mas significa afirmar que a ciência pode estabelecer a verdade de uma premissa num argumento que tenha conclusão com importância religiosa.
Resumindo, vimos seis modos diferentes pelos quais ciência e religião são mutuamente relevantes:
1. A religião fornece a estrutura conceitual em que a ciência pode florescer.
2. A ciência é capaz tanto de contestar como de confirmar as afirmações da religião.
3. A ciência encontra problemas metafísicos que a religião pode ajudar a resolver.
4. A religião pode ajudar a decidir entre teorias científicas.
5. A religião pode ampliar a capacidade explanatória da ciência.
6. A ciência pode estabelecer uma premissa num argumento que tenha conclusão com importância religiosa.
Portanto, em conclusão, vimos que não se deve considerar ciência e religião como inimigos ou mutuamente irrelevantes. Antes, ao contrário, vimos várias maneiras pelas quais elas podem interagir frutiferamente. Afinal, é por isso que está hoje em curso um florescente diálogo entre essas duas disciplinas.

Originalmente publicado como: “What is the Relation between Science and Religion?”Texto disponível na íntegra em: http://www.reasonablefaith.org/what-is-the-relation-between-science-and-religion.
Traduzido por Marcos Vasconcelos. Revisado por Djair Dias Filho.

O Dilema de Eutifron e a Resposta de Willian Lane Craig.


Sócrates

Olá, Dr. Craig. Eu tenho me perguntado ultimamente se você pode gastar algum tempo me ajudando a resolver alguns problemas. Eu estive lidando com o Dilema de Eutífron. Como você sabe, o Dilema consiste numa pergunta parecida com:

“Isso é bom porque Deus aprova, ou Deus aprova por ser bom?”

Agora, o teísta não vai querer dizer que a “Bondade” é boa simplesmente porque Deus a aprova, já que isso faria a moralidade ser arbitrária (chame isso de “Opção A”). Também não vai querer dizer que Deus aprova a Bondade porque ela é, de fato, boa, porque isso pareceria levar à conclusão da existência de padrões de bondade fora de Deus (chame isso de “Opção B”.)

Então, o teísta pode tentar quebrar o dilema entre escolher “A” e “B”, criando uma terceira opção que é: Deus é necessariamente bom, e a fonte e o padrão de Bondade são a própria natureza de Deus. Por um lado, isso evita a “Opção B”, já que Bondade, ao invés de existir fora de Deus, é parte da própria natureza Dele (e depende, na realidade, da Sua existência para existir também). E, ainda por outro lado, também evita a “Opção A”, já que as vontades de Deus não são arbitrárias, mas, ao invés disso, operam de acordam com um padrão absoluto de moral (i.e. a natureza necessariamente boa de Deus).

Mas parece que, agora, o ateu pode reformular em um novo dilema:

“É a natureza de Deus boa porque aconteceu na maneira de Deus ser, ou é boa porque corresponde a algum padrão externo de Bondade?”
Parece-me que a resposta para o Dilema reformulado envolve alguma coisa como a afirmação que a natureza de Deus não poderia ser nada além de boa – i.e. que a natureza de Deus não simplesmente “aconteceu” de ser de uma certa maneira. Mas eu não tenho certeza do que significa dizer isso, visto que, a menos que nós tenhamos uma concepção de Bondade externamente a Deus, isso não parece importar muito, no sentido que não parece sobrar lugar para colocar qualquer restrição na natureza de Deus. Eu suspeito que o conceito de mundos possíveis possa ajudar aqui. Mas eu não tenho certeza como ou por que. Minha sugestão para um argumento seria algo como isso:

(1) Deus é, por definição, um ser maximamente notável;
(2) Isso implica em Ele ser metafisicamente necessário e moralmente perfeito.
(3) Logo, por (2), Deus existe em todos os mundos possíveis.
(4) Mas, se valores morais são objetivos, a perfeição moral representa (ou pelo menos, tende a) um único, máximo conjunto de valores morais.
(5) Então, por (1), (3) & (4), segue que Deus tem o mesmo padrão moral em todos os mundos possíveis.
(6) Logo, a natureza de Deus é boa nem pelo modo que ele “veio” a ser, tampouco por corresponder a um padrão externo de moralidade.

—o que responde o Dilema reformulado.

Isso parece OK para mim. Mas eu não estou convencido de (4). Eu também estou preocupado que eu tenho ido longe demais com isso e tenha começado a falar besteira nesse ponto. Parece que eu estou andando em círculos na minha cabeça. Se você puder explicar de forma clara e simples para mim, eu seria extremamente grato.

James



Resposta do Dr. Craig:

Eu penso que sua intuição acertou o alvo, James! O argumento que você deu simplesmente precisa de alguns ajustes.

Quando o ateu diz “A natureza de Deus é boa porque ‘aconteceu’ na maneira de Deus ser, ou é boa porque corresponde a algum padrão externo de Bondade?”, a segunda opção do Dilema não apresenta nada novo – é a mesma que a segunda opção do Dilema original, ou seja, que Deus aprova alguma coisa por ser boa, e nós já rejeitamos isso. Então a questão se nós estamos presos na primeira opção do Dilema. Bom, se o “aconteceu de ser” que o ateu se refere significa ser uma propriedade contingente de Deus, então a resposta óbvia é “Não”. A natureza moral de Deus é essencial a Ele; foi por isso que nós dissemos que era parte de Sua natureza. Dizer que uma propriedade é essencial a Deus significa dizer que não há nenhum mundo possível em que Deus exista e não tenha essa propriedade. Deus não “aconteceu de ser”, por acidente, amoroso, bondoso, justo e por aí vai. Ele é dessa forma essencialmente.

Você não precisa se preocupar com “o que significa dizer que, a menos que nós tenhamos uma concepção de Bondade externamente a Deus, isso não parece importar muito”. Pois isso é confundir ontologia moral com semântica moral. Nossa questão é com é ontologia moral, isto é, o fundamento na realidade dos valores moral. Nossa questão não é com semântica moral, isto é, o significado dos termos morais. O teísta está pronto para responder que nós temos um entendimento claro do vocabulário moral como “bom”, “mau”, “certo”, e assim vai, sem fazer referência para Deus. Dessa maneira, é instrutivo aprender que “Deus é essencialmente bom”. Muito freqüentemente os opositores do Argumental Moral lançam ataques confundindo ontologia moral tanto com semântica moral com, ainda com mais freqüência, epistemologia moral.



Se nos perguntarem por que Deus é o paradigma e o padrão da Bondade moral, então eu penso que a premissa (1) de seu argumento responde à questão. Deus é maior ser que pode ser concebido, e é maior ser concebido como o paradigma do valor moral que corresponder a ele. Sua premissa (2) também é verdadeira, que é por que Deus pode servir para o fundamento das verdades morais necessárias, i.e., verdades morais que são em qualquer mundo possível. Eu não tenho certeza do que você queria dizer com a premissa (4); mas eu penso que é dispensável. Tudo que você precisa dizer é que os valores morais (ou pelo menos a maioria deles) não são contingentes, mas existentes em todos os mundos possíveis. Então Deus será a base desses valores em todos os mundos possíveis. Isso parece, a mim, resolver o problema. Bem distante de estar falando besteira, parece-me que você nos dirigiu exatamente para a resposta correta!

ENSINAR FILOSOFIA


Por Jack MacIntosh

Os professores ensinam duas coisas: os resultados da investigação e como obter mais resultados. Os professores de filosofia querem descobrir e transmitir verdades filosóficas e, mais importante ainda, querem transmitir a aptidão para obter resultados e para os distinguir de coisas parecidas como o absurdo e a falsidade. Daqui resultam dois quase paradoxos.
Os resultados filosóficos são importantes, e os filósofos geralmente têm perspectivas firmes e, esperam eles, bem pensadas sobre questões filosóficas. Mas querem que os estudantes adquiram a aptidão para formar opiniões justificadas por si próprios, ainda que o custo disto seja o disparate ocasional. Assim, os bons filósofos não se importam geralmente que os estudantes rejeitem as suas opiniões; na verdade, recebem isso braços abertos, desde que a discordância esteja bem fundamentada. Como todos os bons professores sabem, esta característica do processo pedagógico provoca muito nervosismo em alguns estudantes. Efectivamente, como todos os bons estudantes sabem, provoca também muito nervosismo em certos professores.
O segundo semi-paradoxo diz respeito à tensão entre o que é ensinado e o modo como é ensinado. Os filósofos sublinham a persuasão racional, o discurso racional e o exame racional. Como disse Robert Boyle, "A filosofia, quando merece esse nome, não é senão Razão, aperfeiçoada pelo Estudo, pela Aprendizagem e pelo uso das coisas". Contudo, o modo como se transmite a importância da persuasão racional pode ter pouco a ver com a persuasão racional. Humor, ironia, analogia, tom, estrutura das frases, alusão, argumentos ad hominem e argumentos de autoridade, o entusiasmo e a confiança visível do professor, o grau de auto-motivação exigida ao estudante, e uma quantidade de outros factores, incluindo até a própria ordem em que se apresentam perspectivas opostas — tudo isto afecta a probabilidade de o estudante aceitar ou até compreender os aspectos apresentados. Até factores alheios ao intelectual, como a luz que há na sala ou a existência de correntes de ar, afectam a absorção e a aceitação. Pregar a primazia da razão envolve uma quantidade de métodos não racionais.
Platão pensava que a filosofia só podia ser ensinada de alma a alma, e os encontros em pequenos grupos fornecem a melhor maneira de transmitir o que há de emocionante na prática filosófica e as aptidões necessárias para ela. Num tal contexto o estudante pode testar ideias em direcção à verdade, que serão então objecto de escrutínio construtivo pormenorizado por si próprio, pelos seus professores e pelos seus colegas.
Contudo, as realidades do ensino tornam isto muitas vezes terrivelmente utópico. É difícil a uma alma falar com outra quando as almas estão amontoadas em grupos de 300. O que um político chamou “investimento negativo” nos fundos para o ensino, e a consequente deterioração do processo educativo, asseguram que o ideal platónico raramente se realize antes de se chegar aos estudos pós-graduados. (Discussões pormenorizadas respeitantes ao ensino no mundo real são oferecidas trimestralmente na revista Teaching Philosophy. Também interessante é a Thinking,uma revista que se ocupa da filosofia para crianças.)
Platão pensava também que os estudantes precisam de uma rigorosa formação de fundo para a filosofia: algo que os sistemas educativos contemporâneos têm dificuldade em fornecer. Muitos estudantes universitários do primeiro ano não chegam sequer a saber os nomes de Arquimedes ou Newton. Contudo, estas lacunas podem ser preenchidas, e muitas universidades oferecem cursos introdutórios gerais para tentar fazer precisamente isso. Mais pernicioso é quando se inculca deliberadamente o irracionalismo. Sem saber como reagir ao multiculturalismo, muitos professores e demasiados académicos recuam para o relativismo, que eles confundem com tolerância. As escolas produzem agora uma multidão de averroístas que não se importam de dizer na nossa cara "Bem, é verdade para ti, mas não para mim". Assim, além dos preconceitos religiosos, políticos e morais mais ou menos habituais inspirados pelo meio familiar, o ensino contemporâneo acrescenta outro preconceito, o relativismo moral e epistemológico, impresso nas escolas e reforçado por várias disciplinas não filosóficas — preconceitos que o filósofo em acção é chamado a remover antes de o verdadeiro ensino poder começar.


domingo, 28 de julho de 2013

A RELAÇÃO MENTE-CORPO SEGUNDO POPPER



Karl Popper estava bem consciente do problema da relação entre o corpo e a mente. Segundo o mesmo, havia quatro tentativas de resolver o diferendo que eram elas a saber:

1ª)- Interacção corpo-mente: o mundo 2 e o mundo 1 interagem, de modo que, sempre que alguém lê um livro ou ouve uma palestra, ocorrem acontecimentos no cérebro que agem sobre o mundo 2 dos pensamentos do leitor ou do ouvinte; e reciprocamente, quando um matemático ou físico nuclear segue o raciocínio de uma prova, o mundo 2 age sobre o mundo 1. Esta é resumidamente a tese da interacção corpo-mente.

2ª)- Paralelismo corpo-mente: cada um dos processos de pensamento do mundo 2 decorre em paralelo com um acontecimento no cérebro no mundo 1.

3ª)- Fisicalismo puro ou behaviorismo filosófico: só existe um mundo, a saber, o mundo 1, a matéria no seu estado último e mais bruto. O que poderíamos classificar como a matéria em oposição à espiritualidade (oposição aqui só como imagem)

4ª)- Mentalismo ou espiritualismo puro: apenas existe o mundo 2 e o mundo 1 é uma ideia minha (nossa, de todos).

Destas quatro tentativas de explicar o problema da relação corpo-mente, Popper considerava a 1ª tentativa, a interacção corpo-mente, a única que merecia ser levada a sério. E percebe-se bem porquê, pois como as descobertas da física quântica vieram revelar, a interacção corpo-mente era a única que fazia sentido à luz das descobertas do mundo quântico. Mundo este que por sua vez tem um cunho marcadamente espiritualista.
Quanto às segunda e terceira tentativas, Popper achava que ambas constituíam típicas tentativas de resolver um problema através de uma filosofia do tipo "enfiar a cabeça na areia". O problema da relação corpo-mente desaparece na trivialidade assim que é negada a existência quer do corpo quer da mente.

A existência do mundo 3 implica principalmente argumentos que, do ponto de vista de Popper, estabelecem a existência do mundo 2 enquanto intermediário entre o mundo 3 e o mundo 1. Pode dizer-se o mesmo sobre o mentalismo puro. Sabe-se já que não existe substância material, porque a matéria tem uma estrutura altamente complexa e já em parte explicada. Sendo a substância, em filosofia, um portador não analisado de propriedades essenciais que explicam mas que nem requerem nem são passíveis de explicação. Embora a matéria não seja uma substância, as coisas materiais constituem o melhor exemplo de coisas que consideramos reais ou existentes.

Assim sendo, Popper descartava as tentativas 3 e 4. A situação era diversa para o caso da 2ª tentativa, o paralelismo corpo-mente. Segundo Popper, o paralelismo corpo-mente reconhece a existência do corpo e da mente aceitando até a existência do mundo 3. Do ponto de vista do problema corpo-mente, o principal motivo para o paralelismo é o facto de este permitir que o mundo seja considerado como sendo causalmente contido em si mesmo ou, mais precisamente, como consistindo em dois sistemas paralelos causalmente contidos em si mesmos. Isto é particularmente importante para qualquer físico, visto que a ideia que os acontecimentos físicos podem depender dos acontecimentos mentais repugna um físico. Além disso é difícil elaborar um modelo para um efeito causal desse teor, quer dizer, concebê-lo nos seus mais ínfimos pormenores. Esta tem sido a razão que tem levado as pessoas a rejeitar a interacção corpo-mente.

Mas Popper contra-argumenta de forma brilhante. Diz ele que, admite que não existem processos mentais sem que haja acontecimentos no cérebro. Para se falar de paralelismo ter-se-ia igualmente de afirmar que existe uma parte do cérebro em que não ocorrem acontecimentos físicos que não causem acontecimentos mentais paralelos.
Mas segundo o mesmo, teríamos de afirmar que existe uma relação unívoca entre todos os acontecimentos característicos no mundo 2. Mas não parece existir uma tal relação unívoca. Podemos retirar partes do cérebro que outras partes passam a exercer a sua função. A possibilidade de uma transferência de funções parece, no geral, ser característica da maior parte das criaturas vivas (e da maior parte dos fenómenos da vida). E embora Popper estivesse disposto a aceitar que não existem processos de pensamento no mundo 2 sem a existência de acontecimentos cerebrais no mundo 1, tudo lhe levava a crer que não existia paralelismo real. Tratava-se de algo semelhante à relação entre um conteúdo de pensamento no mundo 3 e a sua materialização no mundo 1.
O argumento que Popper considerava ainda mais importante em favor da interacção corpo-mente é o seguinte: Dizia ele que era preciso ter em conta o quanto o nosso ambiente físico, o mundo 1, mudou em consequência das teorias do mundo 3. O que implica uma visão em que o mundo 1 não está causalmente isolado do mundo 2 e 3. Todavia, a tentativa de preservar a autocontenção causal do mundo 1 é, logicamente falando, a principal razão pela qual a primeira e mais antiga tentativa de solução, a interacção corpo-mente, é substituída pelo paralelismo (ou mesmo pelo behaviorismo). Esta tentativa parecia totalmente irrealista a Popper. A ideologia da autocontenção causal do mundo físico tem as suas raízes numa época em que a mecânica constituía o todo da física. Esta teoria já foi refutada pela necessidade de se acrescentar uma teoria do electromagnetismo.
O facto de as teorias, que pertencem ao mundo 3, terem um efeito sobre o mundo 1 através do mundo 2 é um argumento contra a tese da autocontenção causal do mundo 1. Sendo assim, não resta qualquer objecção contra a teoria da interacção corpo-mente.

O VALOR DA FILOSOFIA, Bertrand Russell


Os Problemas da Filosofia 



Capítulo XV


Tendo agora chegado ao término de nossa breve e incompletíssima revisão dos problemas da filosofia, será conveniente considerar, para concluir, qual é o valor da filosofia e por que ela deve ser estudada. É da maior importância considerar esta questão, em vista do fato de que muitos homens, sob a influência da ciência e dos negócios práticos, propendem a duvidar se a filosofia é algo melhor que um inocente mas inútil passatempo, com distinções sutis e controvérsias sobre questões em que o conhecimento é impossível. Esta visão da filosofia parece resultar, em parte, de uma concepção errada dos fins da vida humana e em parte de uma concepção errada sobre o tipo de bens que a filosofia empenha-se em buscar. As ciências físicas, por meio de invenções, são úteis para inumeráveis pessoas que a ignoram completamente; e por isso o estudo das ciências físicas é recomendável não somente, ou principalmente, por causa dos efeitos sobre os estudantes, mas antes por causa dos efeitos sobre a humanidade em geral. É esta utilidade que faz parte da filosofia. Se o estudo de filosofia tem algum valor para outras pessoas além de para os estudantes de filosofia, deve ser somente indiretamente, através de seus efeitos sobre as vidas daqueles que a estudam. Portanto, é em seus efeitos, se é que ela tem algum, que se deve procurar o valor da filosofia. 
Mas, além disso, se não quisermos fracassar em nosso esforço para determinar o valor da filosofia, devemos em primeiro lugar libertar nossas mentes dos preconceitos dos que são incorretamente chamados homens práticos. O homem prático, como esta palavra é frequentemente usada, é alguém que reconhece apenas necessidades materiais, que acha que o homem deve ter alimento para o corpo, mas se esquece que é necessário prover alimento para o espírito. Se todos os homens estivessem bem; se a pobreza e as enfermidades tivessem já sido reduzidas o mais possível, ainda ficaria muito por fazer para produzir uma sociedade verdadeiramente válida; e até no mundo existente os bens do espírito são pelo menos tão importantes quanto os bens materiais. É exclusivamente entre os bens do espírito que o valor da filosofia deve ser procurado; e somente aqueles que não são indiferentes a esses bens podem persuadir-se de que o estudo da filosofia não é perda de tempo. 
A filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o conhecimento. O conhecimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que confere unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos preconceitos e de nossas crenças. Mas não se pode dizer, no entanto, que a filosofia tenha tido algum grande êxito na sua tentativa de fornecer respostas definitivas a seus problemas. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogista, a um historiador ou a qualquer outro cientista, que definido corpo de verdades foi estabelecido pela sua ciência, sua resposta durará tanto tempo quanto estivermos dispostos a lhe dar ouvidos. Mas se fizermos essa mesma pergunta a um filósofo, ele terá que confessar, se for sincero, que a filosofia não tem alcançado resultados positivos tais como tem sido alcançados por outras ciências. É verdade que isso se explica, em parte, pelo fato de que, mal se torna possível um conhecimento preciso naquilo que diz respeito a determinado assunto, este assunto deixa de ser chamado de filosofia, e torna-se uma ciência especial. Todo o estudo dos corpos celestes, que hoje pertence à Astronomia, se incluía outrora na filosofia; a grande obra de Newton tem por título: Princípios matemáticos da filosofia natural. De maneira semelhante, o estudo da mente humana, que era uma parte da filosofia, está hoje separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Assim, em grande medida, a incerteza da filosofia é mais aparente do que real: aquelas questões para as quais já se tem respostas positivas vão sendo colocadas nas ciências, ao passo que aquelas para as quais não foi encontrada até o presente nenhuma resposta exata, continuam a constituir esse resíduo, que é chamado de filosofia. 
Isto é, no entanto, só uma parte do que é verdade quanto à incerteza da filosofia. Existem muitas questões ainda — e entre elas aquelas que são do mais profundo interesse para a nossa vida espiritual — que, na medida em que podemos ver, deverão permanecer insolúveis para o intelecto humano, a menos que seus poderes se tornem de uma ordem inteiramente diferente daquela que são atualmente. O universo tem alguma unidade de plano e objetivo, ou ele é um concurso fortuito de átomos? É a consciência uma parte permanente do universo, dando-nos esperança de um aumento indefinido da sabedoria, ou ela não passa de transitório acidente sobre um pequeno planeta, onde a vida acabará por se tornar impossível? São o bem e o mal importantes para o universo ou somente para o homem? Tais questões são colocadas pela filosofia, e respondidas de diversas maneiras por vários filósofos. Mas, parece que se as respostas são de algum modo descobertas ou não, nenhuma das respostas sugeridas pela filosofia pode ser demonstrada como verdadeira. E, no entanto, por fraca que seja a esperança de vir a descobrir uma resposta, é parte do papel da filosofia continuar a examinar tais questões, tornar-nos conscientes da sua importância, examinar todas as suas abordagens, mantendo vivo o interesse especulativo pelo universo, que correríamos o risco de deixar morrer se nos confinássemos aos conhecimentos definitivamente determináveis. 
Muitos filósofos, é verdade, sustentaram que a filosofia poderia estabelecer a verdade de certas respostas a tais questões fundamentais. Eles supuseram que o que é mais importante no campo das crenças religiosas pode ser provado como verdadeiro por meio de estritas demonstrações. A fim de julgar tais tentativas, é necessário fazer uma investigação sobre o conhecimento humano, e formar uma opinião quanto a seus métodos e suas limitações. Sobre tais assuntos é insensato nos pronunciarmos dogmaticamente. Porém, se as investigações de nossos capítulos anteriores não nos induziram ao erro, seremos forçados a renunciar à esperança de descobrir provas filosóficas para as crenças religiosas. Portanto, não podemos incluir como parte do valor da filosofia qualquer série de respostas definidas a tais questões. Mais uma vez, portanto, o valor da filosofia não depende de um suposto corpo de conhecimento definitivamente assegurável, que possa ser adquirido por aqueles que a estudam.
O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem algumas noções de filosofia caminha pela vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais de sua época e do seu país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas e as possibilidades infamiliares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos damos conta (como vimos nos primeiros capítulos deste livro) de que até as coisas mais ordinárias conduzem a problemas para os quais somente respostas muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica nosso sentimento de admiração, ao mostrar as coisas familiares num determinado aspecto não familiar. 
Além de sua utilidade ao mostrar insuspeitas possibilidades, a filosofia tem um valor — talvez seu principal valor — por causa da grandeza dos objetos que ela contempla, e da liberdade proveniente da visão rigorosa e pessoal resultante de sua contemplação. A vida do homem reduzido ao instinto encerra-se no círculo de seus interesses particulares; a família e os amigos podem ser incluídos, mas o resto do mundo para ele não conta, exceto na medida em que ele pode ajudar ou impedir o que surge dentro do círculo dos desejos instintivos. Em tal vida existe alguma coisa que é febril e limitada, em comparação com a qual a vida filosófica é serena e livre. Situado em meio de um mundo poderoso e vasto que mais cedo ou mais tarde deverá deitar nosso mundo privado em ruínas, o mundo privado dos interesses instintivos é muito pequeno. A não ser que ampliemos nosso interesse de maneira a incluir todo o mundo externo, ficaremos como uma guarnição numa praça sitiada, sabendo que o inimigo não a deixará fugir e que a capitulação final é inevitável. Não há paz em tal vida, mas uma luta contínua entre a insistência do desejo e a impotência da vontade. De uma maneira ou de outra, se pretendemos uma vida grande e livre, devemos escapar desta prisão e desta luta. 
Uma válvula de escape é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica não divide, em suas investigações mais amplas, o universo em dois campos hostis: amigos e inimigos, aliados e adversários, bons e maus; ela encara o todo imparcialmente. A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o restante do universo é semelhante ao homem. Toda aquisição de conhecimento é um alargamento do eu, mas este alargamento é melhor alcançado quando não é procurado diretamente. Este alargamento é obtido quando o desejo de conhecimento é somente operativo, por um estudo que não deseja previamente que seus objetos tenham este ou aquele caráter, mas adapte o eu aos caracteres que ele encontra em seus objetos. Esse alargamento doeu não é obtido quando, tomando o eu como ele é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este eu que seu conhecimento é possível sem qualquer aceitação do que parece estranho. O desejo para provar isto é uma forma de egotismo, é um obstáculo para o crescimento do eu que ele deseja, e do qual o eu sabe que é capaz. O egotismo, na especulação filosófica como em tudo o mais, vê o mundo como um meio para seus próprios fins; assim, ele faz do mundo menos caso do que faz do eu, e o eu coloca limites para a grandeza de seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos do não-eu, e por meio de sua grandeza os limites do eusão ampliados; através da infinidade do universo, a mente que o contempla participa um pouco da infinidade. 
Por esta razão a grandeza da alma não é promovida por aquelas filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do eu com o não-eu. Como toda união, ela é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo em conformidade com o que descobrimos em nós mesmos. Existe uma tendência filosófica muito difundida em relação a visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas; que a verdade é construção humana; que espaço e tempo, e o mundo dos universais, são propriedades da mente, e que, se existe alguma coisa que não seja criada pela mente, é algo incognoscível e de nenhuma importância para nós. Esta visão, se nossas discussões precedentes forem corretas, não é verdadeira; mas além de não ser verdadeira, ela tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo aquilo que lhe dá valor, visto que ela aprisiona a contemplação do eu. O que tal visão chama conhecimento não é uma união com o não-eu, mas uma série de preconceitos, hábitos e desejos, que compõem um impenetrável véu entre nós e o mundo para além de nós. O homem que se compraz em tal teoria do conhecimento humano assemelha-se ao homem que nunca abandona seu círculo doméstico por receio de que fora dele sua palavra não seja lei. 
A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra sua satisfação no próprio alargamento do não-eu, em toda coisa que engrandece os objetos contemplados, e desse modo o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo aquilo que é pessoal e privado, tudo o que depende do hábito, do autointeresse ou desejo, deforma o objeto, e, portanto, prejudica a união que a inteligência busca. Levantando uma barreira entre o sujeito e o objeto, as coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O livre intelecto enxergará assim como Deus poderia ver: sem um aqui e agora; sem esperança e sem medo; isento das crenças habituais e preconceitos tradicionais; calmamente, desapaixonadamente, com o único e exclusivo desejo de conhecimento — conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo quanto é possível a um homem alcançar. Por isso, o espírito livre valorizará mais o conhecimento abstrato e universal em que não entram os acidentes da história particular, que ao conhecimento trazido pelos sentidos, e dependente — como tal conhecimento deve ser — de um ponto de vista pessoal e exclusivo, e de um corpo cujos órgãos dos sentidos distorcem tanto quanto revelam. 
A mente que se tornou acostumada com a liberdade e imparcialidade da contemplação filosófica preservará alguma coisa da mesma liberdade e imparcialidade no mundo da ação e emoção. Ela encarará seus objetivos e desejos como partes do Todo, com a ausência da insistência que resulta de considerá-los como fragmentos infinitesimais num mundo em que todo o resto não é afetado por qualquer uma das ações dos homens. A imparcialidade que, na contemplação, é o desejo extremo pela verdade, é aquela mesma qualidade espiritual que na ação é a justiça, e na emoção é o amor universal que pode ser dado a todos e não só aos que são considerados úteis ou admiráveis. Assim, a contemplação amplia não somente os objetos de nossos pensamentos, mas também os objetos de nossas ações e nossos sentimentos: ela nos torna cidadãos do universo, não somente de uma cidade entre muros em estado de guerra com tudo o mais. Nesta qualidade de cidadão do mundo consiste a verdadeira liberdade humana, que nos tira da prisão das mesquinhas esperanças e medos. 
Enfim, para resumir a discussão do valor da filosofia, ela deve ser estudada, não em virtude de algumas respostas definitivas às suas questões, visto que nenhuma resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida como verdadeira, mas sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais questões alargam nossa concepção do que é possível, enriquecem nossa imaginação intelectual e diminuem nossa arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas acima de tudo porque através da grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também se torna grande, e se torna capaz daquela união com o universo que constitui seu bem supremo.

Tradução: Jaimir Conte


DEUS E A EXISTÊNCIA por Etienne Gilson


DEUS E A EXISTÊNCIA

por Etienne Gilson



Seria, para nós, muito instrutivo sabermos os caminhos pelos quais Tomás de Aquino chegou à apreensão de suas noções fundamentais em Filosofia, e, pela mesma razão em Teologia. Eis algo que muito raramente conhecemos no caso de qualquer filósofo, e que, sem dúvida ignoramos no tocante a São Tomás. A sua reforma doutrinai liga-se a certa noção de ser elaborada por ele próprio. Esta noção encontramo-la perfeitamente formulada no De Ente et Essentia, escrito por volta de 1256. Tinha ele, então, 31 anos. Já no Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, Tomás de Aquino servira-se da mesma noção do ser, aplicando-a especialmente a Deus. Seja de 1253 ou de 1254, este Comentário foi o seu primeiro trabalho. Pode-se dizer, por conseguinte, que, tal como nós historiadores o conhecemos, Tomás sempre teve sua própria noção de ser. 


Ainda não se tentou fazer a história pré-tomista desta noção. Ela foi preparada com certeza pela Metafísica de Avicena, e, através desta, pela de Alfarabi. Sustentavam estes dois filósofos a tese de que a existência é um complemento da substância que, por não estar incluso na sua essência, lhe sobrevém, por assim dizer, como um acidente. Somente Deus não recebe a existência como complemento de sua essência. Deus não tem sua própria existência, ele é sua própria existência. Moisés Maimonides, o Rabi judeu por quem São Tomás sempre manifestou sincero respeito, percebeu a importância teológica e religiosa desta doutrina. E, de fato, o Deus do Antigo Testamento, que é comum a judeus, muçulmanos e cristãos, não poderia ser melhor descrito do que por esta mesma noção de ser que a própria Sagrada Escritura, se não ensinara, pelo menos sugerira a filósofos e teólogos. Houve, por certo, uma espécie de preparatio thomistica e o historiador seria o último a minimizar sua importância. Não obstante, como se verá, a noção propriamente tomista de ser aparece pela primeira vez nos trabalhos de São Tomás de Aquino.

Ignorando como Tomás de Aquino chegou a esta nova noção, gostaríamos de saber ao menos como demonstrou a sua veracidade, ou, pelo menos, como justificou o seu significado.

Aqui, novamente, em vão procuraríamos em seus escritos teológicos ou filosóficos a justificação de sua noção de ser. Ele a utiliza com freqüência, recorre a ela, em última análise, sempre que problemas fundamentais estão em jogo, mas não sugere qualquer caminho através do qual se possa esclarecer, explicar ou justificar analiticamente esta noção. Não existe nenhuma outra noção a partir da qual se possa encontrá-la seja por indução ou por dedução. B não é de admirar. Como o "ente" é uma noção primeira, ou melhor, é a noção absolutamente primeira, goza da indemonstrabilidade própria dos princípios. Ora, assim como a noção do ser pode muito bem ser "vista", isto é, ser objeto de "intuição" mas não pode justificar-se por uma noção anterior (pois que esta noção anterior já incluiria o ser), assim também a noção do ser, tal como a interpreta Tomás de Aquino, pode muito bem ser entendida, possuída, contemplada e usada como fonte de luz na investigação da natureza da realidade, mas não pode justificar-se dedutiva ou indutivamente por nenhuma espécie de demonstração. Neste caso, desde que estamos lidando com o primeiro princípio, o método pode ser apenas "ostensivo".

Duas vezes podemos seguir passo a passo nos trabalhos de Tomás de Aquino — uma na Contra Gentiles e outra na Summa Theologiae — o seu modo pessoal de abordar a noção do ser que está no âmago de sua concepção metafísica da realidade. Na Contra Gentiles — cujo texto seguiremos —, partindo da demonstração da existência de Deus concebido como o Primeiro Motor Imóvel do mundo da natureza, Tomás estabelece sucessivamente, seguindo um método de remoção progressiva, primeiro que Deus não tem começo nem fim: é eterno; a seguir, que não há em Deus potência passiva, nem matéria, nada de violento ou de não natural e nada de corpóreo. No Livro I, cap. 21, prova que Deus é sua própria essência e, finalmente, no cap. 22, que em Deus são idênticos "ser atual" e "essência". Esta conclusão é decisiva para a determinação da noção tomista de ser. Efetivamente, agora sabemos que há um ente que é "ser" e nada mais do que ser. Este ente é Deus. Assim, portanto, se soubermos o que Deus é, estaremos seguros de saber o que é, na realidade "puro ser". O caminho que seguiu Tomás nesta indução progressiva consistiu em eliminar da noção da natureza divina, sucessivamente, todos os tipos concebíveis de composição. Parece, por conseguinte, que a noção tomista de ser poderia facilmente encontrar-se ao caso da seqüência metafísica, que, partindo da mobilidade e mntabilidade da natureza, termina na afirmação de" um ente tão perfeitamente simples, que a única coisa que dele se pode dizer é que ele é.

Indubitavelmente isto é verdade, mas a questão precisa é de saber por que Tomás de Aquino, nesta seqüência metafísica, não parou no capítulo 21. no qual demonstrou que Deus é sua própria essência, ou, em outras palavras, que Deus é essência. De fato, este é o ponto em que aquela operaçãometafísica se deteria numa teologia, como a de Santo Agostinho, que considerasse sinônimas as palavras Deus, essência, ser e imutabilidade.

Seria fácil reunir textos em que Sto. Agostinho usa estas noções como interpretações da célebre passagem do Êxodo em que Deus, respondendo à pergunta de Moisés, declara expressamente que o seu nome é ELE É. Um simples trecho do "De doctrina christiana" (1, 32, 35), bastaria para estabelecer a identidade das noções de ser e de imutabilidade na teologia de Sto. Agostinho: "Suprema e primariamente é quem é absolutamente imutável e quem tinha toda autoridade para dizer: eu sou aquele que sou, e: dir-lhe-ás: QUEM É enviou-me a vós". E noutro lugar (Sermo VII, 3, 4: pl 38, 61): "Que é isto? ó Deus, ó Senhor Nosso, qual é o vosso nome? Meu nome é,É, diz Deus. Mas significa "meu nome é É"? Significa: Permaneço eternamente, porque não sou mutável. As coisas que mudam não são, porque não são permanentes. Ser é ser permanente. O que muda foi algo e será algo, mas não é, porque é mutável. Bis por que a imutabilidade de Deus deu testemunho de ei próprio, dizendo: Eu sou Aquele que sou". Para a equivalência de imutabilidade e essência, o texto decisivo se encontra no De Civitate Dei, V, 2, 3; PL 4.912: "Pois Deus indubitavelmente é substância, ou, melhor, Deus é a essência que os gregos costumavam chamar OUSIA. Como sapientia vem de sapere e scientia de scire, assim também essentia vem de esse, E, efetivamente, quem é mais do que aquele que disse a seu servo Moisés: Sou Aquele que Sou e dirás aos filhos de Israel: Quem É enviou-me a vós?" (Cf. De Civitate Dei, 11, 2; PL. 41, 350).

Tomás de Aquino poderia não ter ido além, seguindo a linha da essência; mas ele, tomou novo caminho, quando passou do capítulo 21 ao capítulo 22. Seria provavelmente mais exato dizer que, desde o começo, seu itinerário metafísico estava orientado para um ponto além da essência. No capítulo 21 tentara Tomás fazer-nos compreender, por meio de um simples exemplo, o sentido da proposição "Deus é sua essência". Que é a essência de umhomem tal como Sócrates, por exemplo? É humanidade. É Sócrates humanidade ? A resposta seria quase negativa. Sócrates é um espécime particular de humanidade, individualizado por sua própria matéria. Em suma, Sócrates é humanidade plus algo que o faz ser o indivíduo singular que ele é. Ora, se Deus é absolutamente simples não pode ser algo plus outra coisa. Assim, diz Tomás: "a essência divina existe por si como um existente singular e individualizado por si mesmo" (C. G., I, 21, 4;). Ninguém pode demonstrar mais brilhantemente a conclusão estabelecida por Sto. Agostinho.

Mas, como vimos, o capítulo 22 vai além no caminho seguido até então por todos os teólogos. Tomás procedeu à redução da essência ou entidade divina, a que ele chama o "ser" ("esse") de Deus. Deste "ser" ("esse"), de início, nada mais sabemos senão que é aquilo a que, em Deus, tem de reduzir-se a essência (essentia) ou quidade (quidditas). A essência de Deus, de modo algum, se distingue desse "ser" ("esse"). Note-se ainda: desde que Tomás, no capítulo 21 argumentou que Deus é sua essência, este "ser" ("esse"), agora, no capítulo 22, não pode ser essência outra vez. Ele é, diz Tomás, "o nome de um ato" (C. G., I, 22, 7). Pois bem, se a essência de Deus não fosse o seu "ser" ("esse"), não seria por si mesma; Deus não seria por sua própria essência: seria por participação ao verdadeiro "esse" graças ao qual ele existe (ibid. §9). O objetivo desta demonstração é evidentemente identificar Deus com o ato sem o qual nenhuma essência existiria. Dizer que Deus é simples significa, neste passo, que ele é o puro atode Ser.

Nosso problema agora consiste em averiguar a origem da noção, se pudermos. A primeira hipótese é que Tomás de Aquino a encontrou nasEscrituras; de modo mais preciso, no texto do Êxodo a que a; abamos de nos referir. Mas, se assim é, por que nenhum outro teólogo a teria encontrado antes de Tomás de Aquino? Agostinho conhecia esta passagem do Êxodo e nós o vimos citá-la mais de uma vez; sempre, no entanto, com a mesma conclusão: Eu Sou significa sou imutável, porque ser e ser imutável são uma só e mesma coisa. Se a noção tomista do ato de ser se encontra nas Escrituras, por que Agostinho, quando diz que Deus é essentia, não acrescenta: isto é, no caso de Deus, o seu próprio ato de ser? Agostinho não tem dúvida quanto à conclusão a tirar-se do texto do Êxodo: "est EST" (Cf. ed. Skutella XIIT, 31, 6, pg. 367). Mas logo acrescenta: Deus é É como é o bem dos bens (Phil. et Incarn., p. 26, n.° 1, cf. pg. 13, nota 1). Se Deus houvesse ensinado de modo explícito aos homens que seu nome era o puroato de existência, Agostinho, e muitos outros, teriam provavelmente entendido o sentido da mensagem divina antes do século XIII.

Outra hipótese é que Tomás de Aquino, tendo já em mente sua noção do ato de ser, leu-a no texto do Êxodo. Ora, assim como não estamos aparelhados para negar que Tomás chegou a esta noção enquanto lia as Escrituras, talvez mesmo enquanto as ensinava, assim também não o estamos para negar que Tomás a descobriu primeiro no curso de suas reflexões metafísicas, usando-a mais tarde na interpretação das Escrituras. Como já dissemos, não sabemos qual foi o processo da descoberta desta noção, na mente de São Tomás.

Esta extraordinária descoberta metafísica está, nos seus trabalhos, em conexão com um texto das Sagradas Escrituras, e não conseguimos ver de que forma ele, simplesmente como filósofo, a poderia ter elaborado.

A descoberta de Tomás de Aquino é particularmente notável porque se prende à intuição do primeiro princípio. As descobertas filosóficas importantes têm consistido em revelar certas conseqüências ainda não percebidas embora decorram necessariamente de princípios já conhecidos. Outro tipo de descoberta filosófica consiste em substituir um antigo princípio por um novo, sempre possível, principalmente se há menos interesse pela verdade do que pela novidade. Mas a descoberta de Tomás de Aquino foi de tipo raro. Constituiu em perceber, pela primeira vez, a profundíssima conseqüência daquilo que inúmeros filósofos já haviam reconhecido como o primeiro princípio em filosofia.

Podemos apresentar, de diversas maneiras, o objeto desta descoberta. Por exemplo: seria o puro fato da existência atual algo que a filosofia devesse tomar por certo, sem mais indagação a seu respeito? Ou, ao contrário, deveriam os filósofos tomar a existência atual como objeto de importância para a reflexão filosófica?

Outro modo de formular a mesma questão consiste em indagar se há algo de misterioso no fato de que exista alguma coisa em vez de nada. Nada haverá de estranho no fato de que algo é atualmente, ou existe? Rejeitar esta indagação não suprime o problema. Este é tão importante que da sua resposta depende a solução dos demais problemas. Tão logo formulado, torna-se imediatamente visível que, se na realidade alguma coisa é, ser é tão importante que se apresenta como a condição necessária para tudo o mais. Ora, podemos estar certos, a priori, de que aquilo que é mais importante narealidade é também aquilo que Deus, de modo mais eminente, é. Segue-se, pois, que ao nomear Deus, e tentar falar dEle, a primeira coisa a se compreender e se dizer, é que Ele é Puro Ato de ser, precisamente como, na doutrina de Aristóteles, a primeira coisa a se dizer dEle é que Ele é o Puro Ato de Pensar.

Pode-se formular a mesma conclusão, de outro modo, na linguagem do nosso tempo, — não para fazer São Tomás afirmar o que ensinam os nossos contemporâneos, mas, antes, na esperança de fazer nossos contemporâneos entenderem o que o próprio São Tomás se esforçou quanto pôde para nos fazer compreender. Digamos, neste espírito, que Deus é o Puro Ato Existencial; vale dizer, o Ato cuja essência toda é ser, e nada mais do que ser. O mais notável, entretanto, é que ao tentar exprimir esta verdade, as melhores palavras que nos vêm à mente não são as que tomamos à filosofiacontemporânea : são as palavras usadas séculos atrás pelas Escrituras, que não são de forma alguma um tratado de Metafísica. Dizemos que o nome de Deus é ELE É, ou QUI EST, o texto sagrado, lido com a visão metafísica de Tomás de Aquino, dá a formulação mais perfeita desta nova noção deDeus. Mais admirável ainda, se possível, é a resposta do Cristo aos que lhe perguntavam se ele realmente queria dizer que era mais velho do que Abraão e do que os profetas. Cristo não respondeu : antes de Abraão existisse eu era: Ele respondeu: antes que Abraão existisse, eu Sou. (João, 8, 58).

Isto não é filosofia, evidentemente; pode ajudar, entretanto, a perceber o verdadeiro sentido daquilo que, de outro modo, permaneceria fórmula abstrata: em Deus, a essência não é de modo algum distinta do Puro Ato de Ser.

Tinha Tomás de Aquino, neste ponto, notável predecessor: o filósofo árabe Avicena. Em certo sentido, Avicena fora ainda mais longe do que o próprio Tomás. Ele simplesmente negava que Deus tivesse essência. O Deus de Avicena é antes de mais nada o Ser Necessário. Como tudo o que acontece a qualquer ente, acontece em virtude de sua essência, um ser necessário não tem essência. Nem existe em virtude de sua essência, pois não tem essência de modo algum. "Primus igitur non habet quidditatem" (Avicena, Metafísica, tr. V, oap. 4).

Eis um modo de falar que deve ter seduzido o espírito de Tomás de Aquino. Em rigor, dizer que Deus não tem essência era exprimir de maneira feliz o sentido metafísico das palavras da Escritura: EU SOU, e meu nome é Aquele que É. Tomás de Aquino provavelmente sentiu-se tentado a seguirAvicena neste ponto, e não é de admirar que ao menos um de seus historiadores tenha atribuído a Tomás a doutrina aviceneana de que Deus não temessência. Na realidade, Tomás jamais usou estas palavras. Ora, ele as lera em Avicena, e teria sido perfeitamente capaz de forjá-las sem o auxílio de ninguém. Por que, então, se absteve sempre de dizer que Deus não tem essência?

Pelo que sabemos, Ele próprio nunca explicou esta dificuldade. O que dizemos a respeito, dizemo-lo portanto, sob nossa responsabilidade, mas existe ao menos uma explicação razoável, que se ajusta muito bem à inspiração geral da doutrina. Segundo Tomás de Aquino, tudo o que se diz de Deusorigina-se no conhecimento sensível, que temos dos seres naturais. Removendo, gradativamente, das noções que formamos dos seres físicos, tudo o que implica a mínima conotação de imperfeição, chegaremos a uma noção, por completo purificada, de Aquele que é a absoluta perfeição de ser. Esta é uma formulação negativa do mais positivo de todos os objetos concebíveis pela inteligência humana. Para conferir-lhe um mínimo de conceptibilidade, Tomás parece ter aderido com rigor à "via remotionis", defendida por Dionisio e abertamente recomendada pelo próprio Tomás. Procedeu assim, já o vimos, na Contra Gentiles. Depois de eliminar da noção de Deus qualificativos como materialidade, corporeidade, composição e congêneres, Tomás atingiu o estágio derradeiro do seu processo de purificação no momento em que, tendo indagado se Deus é sua própria essência (C. G. I, 21), continua a investigar se Deus é o seu próprio Ato de Ser (esse) (C. G. I, 22). A resposta, naturalmente, teria de ser: sim, mas, até neste momento decisivo, não quer que percamos (nós e ele próprio) o contato com a quididade das coisas sensíveis, que é o ponto de partida necessário para toda indagação sobre Deus. Ora, para nós, saber alguma coisa é ter resposta à questão: "que é isto?" Se Deus não tem essência, não tem "que", e, se isto fosse verdade, a resposta à questão "que é Deus?" seria: nada. Muitos místicos não hesitarão em falar assim, no sentido preciso de que Deus é infinitamente diferente de todo objeto que se pode chamar "coisa"; contudo, dizer que Deus não é coisa alguma por certo não significa que AQUELE QUE É não é. A atitude certa a propósito deste magno problema é permitir ao intelecto humano alcançar o limite extremo accessível ao seu esforço depurificação, relativamente à noção de ser. Dizer que o ser absoluto não tem essência seria torná-lo completamente impensável. Por isso Tomás preferiu dizer que em Deus, aquilo que nos seres materiais se chama essência, deveria denominar-se o Ato de Ser.

NA: Deve notar-se que Tomás não condenou a fórmula. Simplesmente, absteve-se de usá-la, por razões que serão investigadas.

É ainda mais importante notar que esta posição justifica de pronto a conseqüência que Deus não está incluído em nenhum gênero. Pois tudo o que está num gênero tem uma essência distinta do seu ato de ser: "Aliquid enim est, sicut Deus, cuius essentia est ipsum suum esse; et ideo inveniuntur aliqui philosophi dicentes quod Deus non habet essentiam: quia essentia eius non est aliud quam esse eius. Et ex hoc sequitur quod ipse non sit in genere: quia omne quod est in genere oportet quod liabeat quidditatem praeter esse suum; cum quidditas aut natura generis aut speciei non distinguatur seeundum rationem nature in illis quorum est genus vel species; sed esse est in diversis diversimode." De ente et essentia, vi, a; Marietti, pp. 17-18. — "Dicendum quod Deus non sit in genere. . . Primo quidem, quia nihil ponitur in genere seeundum esse suum, sed ratione quidditatis suae; quod ex hoc patet quia esse uniuscuiusque est ei proprium, et distinctum ab esse cuiuslibet alterius rei; sed ratio substantiae potest esse communis: propter hoc etiam Philosophus dicit (III Metaph., com. 10), quod ens non est genus. Deus autem est ipsum suum esse: unde non potest esse in genere." De potentia. q. vii, a. 3, Eesp. Marietti, II, p. 193.



É o que faz Tomás quando tem de exprimir esta verdade suprema . Em lugar de dizer, como poderia fazê-lo, que Deus não tem quididade, habitualmente diz que em Deus a essência ou quididade em nada se distingue do ser. Assim, se perguntássemos: "que é Deus?" teríamos a resposta:Deus é seu próprio Ato de Ser. E verdadeiramente, Ele nada mais é do que o Puro Ato de Ser. Ora, poder-se-ia propor ainda outra questão: por que então não dizer que Deus não tem essência ? A resposta seria: se pela palavra essência se entende algo diferente, por mínimo que seja do puro ato deexistência atual de Deus, então é exato dizer que Deus não tem essência. Segundo Dionisio o Areopagita, e muitos místicos, Deus é então apreendido como Aquele que, por sua transcedência, não é coisa alguma, e que, nesta vida é o mais elevado objeto de contemplação espiritual. Mas opensamento metafísico permanece muito abaixo do plano da vida mística. Serve-se de palavras e é da essência da linguagem que as palavras tenham sentido. Por isso, segundo cremos, Tomás de Aquino não quer que percamos totalmente contato com a realidade finita até quando tentamos exprimir a verdade que separa Deus de tudo o mais.

Usar comparação tomada ao mundo dos sentidos, como meio de acesso a uma verdade metafísica, está bem dentro do espírito do tomismo. Suponhamos, então, que empreendemos uma viagem marítima. Começamos por nos separar de tudo o que havemos de deixar atrás, pessoas e coisas. Encontramo-nos a bordo, no universo estranhamente limitado, que será o nosso por alguns dias; mas nada acontece de decisivo, até que chega o último momento, quando o navio finalmente corta as amarras e parte. Estamos no mar, e se nos perguntarem onde nos encontramos, não poderemos responder citando o nome de nenhum lugar preciso. Tudo o que podemos dizer é a quantas mil milhas longe da terra nos encontramos. Algo parecido ocorre quanto tentamos falar de Deus. Enquanto temos uma noção precisa do que Ele não é, nossas palavras guardam certo sentido positivo, mas quando chegamos à questão: "é Deus distinto do seu próprio ato de ser?", então é a hora de nosso intelecto cortar as amarras, perder contato com aterra firme da essência, ou quididade, e lançar-se no oceano infinito da pura atualidade existencial. Não podemos dizer mais onde estamos, porque não há marcos terrestres onde não há mais terra. Mas lembramo-nos ainda de que havia uma terra, e é em relação a ela que podemos talvez nos atribuir uma espécie de localização instável. Qual a última coisa de que um ente concreto teria de despojar-se para obter simplicidade total? A sua essência, naturalmente. Mas se o fizesse, deixaria de existir. Que resta de um homem, se deixar de ser homem? Mas, falando de Deus, pelo modo com que nós,homens podemos fazê-lo, precisamos de ambas as coisas: abandonar a essência para alcançar o alto mar do puro Ser, e retê-la, a fim de conservar um objeto inteligível. É o que fazemos quando, à questão: " onde estamos agora ?", respondemos: estamos além da essência. Não estamos além do ser: ao contrário, estamos além da essência, no próprio coração do ser.

Dizer estas coisas de Deus é apontar, por meio de um último ato de remoção, o mais eminente de todos os objetos do entendimento humano. Se disséssemos que Deus é isto, nossa proposição traria a conseqüência de que Deus não é aquilo. Ao contrário, dizemos que Deus não é isto nem aquilo, implicitamente afirmamos que nada há que Deus não seja. Se disséssemos : Deus é aquilo que está além de todo pensamento, porque é o UM, teríamos de negar-lhe verdade, inteligibilidade, e, em suma, tudo o que não fosse absoluta unidade. Se disséssemos que Deus é, essencialmente, ohttp://sophia.hyperlogos.info/tiki-index.php?page=Bem" >Bem deveríamos então negar-lhe tudo o que não é da essência da bondade enquanto bondade, ou por outra, como ocorreu a certos teólogos, teríamos de introduzir na sua essência uma espécie de "composição formal" dificilmente compatível com a sua absoluta simplicidade. Ao contrário, afirmar que Deus é somente ser, é negar-lhe tudo o que, sendo uma determinação do ser, é uma negação do ser.

O ato de ser, que se afirma de Deus, é inteiramente diferente da noção abstrata de ser, que formamos quando concebemos o ser na sua completa generalidade. Ser, neste último sentido, é o mais geral de todos os conceitos. É um universal, isto é, um ente de razão como aqueles que constituem o objeto da Lógica, Tais entes não têm outra existência a não ser a das noções presentes ao entendimento. Uma das regras fundamentais seguintes aos conceitos, na Lógica, é que a sua compreensão está em razão inversa de sua extensão. Uma vez que a noção de ser abrange tudo o que é, tem ela uma extensão ilimitada; conseqüentemente, sua compreensão é tão limitada quanto possível. Na realidade, a sua compreensão é nula. Quando Hegel partiu de semelhante noção do ser, no começo de sua Lógica, notou imediatamente que, depois de dizer que o ser é a sua segunda afirmação teria de ser, necessariamente, que o ser não é. Com efeito, que significa a noção de ser? Visto que esta noção como tal não designa nenhum ser ou modo de ser em particular, ela nada mais significa do que o simples fato de que o objeto ao qual ela se atribui é alguma coisa,

Não se dá o mesmo no caso do puro Ato de Ser. Longe de significar uma noção abstrata e universal sem realidade extra mental, a noção do puro "esse" indica um ser realmente subsistente, cuja perfeição não tem limites. Deus é absolutamente distinto de todos os outros entes, cada um dos quais tem uma essência distinta de sua existência. E isso porque é Ele mesmo o seu próprio ato de ser. A pureza existencial de Deus o individualiza, por assim dizer, e o coloca à parte de tudo o mais. A noção de Deus é tal que a sua extensão se limita estritamente a um único ser, isto é, somente aDeus, ao passo que a compreensão é infinita.

NA: "Ad quartum dicendum quod esse divinum, quod est eius substantia, non est esse commmune, sed est esse distinctum a quolibet alio esse. Unde per ipsum suum esse Deus differt a quolibet alio ente." Qu. Disp. de potentia, vii, 2, resp. Marietti, II, 192.



É característico da doutrina de São Tomás de Aquino que nela não se põe o problema da infinidade de Deus. Se ocorrer surgir, a resposta à questão não exige a introdução de qualquer nova noção além da do puro ato de ser. Vê-se isso particularmente no artigo da Summa em que Tomás responde à questão "se Deus é infinito". "Infinito" é termo tipicamente negativo. Significa que o objeto ao qual se aplica não é finito. Ora, ser absolutamente não finito é a mesma coisa que não ser sujeito a nenhuma limitação. O ente que é o Ato absoluto de Ser é, pela mesma razão, absolutamente livre de todas as limitações. O sentido primitivo da palavra "absoluto" é, de modo preciso; livre de qualificação, de restrição, de limite. Como o ato que Deus é, não é recebido em nada que o possa determinar, qualificar ou limitar, — ser e ser infinito são, para Deus, uma só e mesma coisa, conclui Tomás de Aquin» (De Potentia, q. 1, a 2, Resp.; Marietti, II, 11).

NA: "Unde patet quod Deus est infinitus: quod sic videri potest. Esse enim hominis terminatum est ad hominis speciem, quia est receptum in natura speciei humanae; et simile est de esse equi, vei cuiuslibet creaturae. Esse autem Dei, cum non sit in aliquo receptum, sed sit esgepurum, non limitatur ad aliquem modum perfectionis essendi, sed totum esse in se habet; et sic, sicut esse in universali acceptum ad infinita se potest extendere, ita divinum esse infinitum est; et ex hoc patet quod virtus vel potentia sua activa, est infinita".


Por conseguinte, o ato de ser de Deus é aquilo que nos outros entes chamaríamos essência. Se há uma pedra de toque na doutrina de São Tomás de Aquino, tanto em Filosofia, como em Teologia, é bem esta. Nem podemos hesitar quanto à importância que o próprio Tomás lhe atribui. Há certo calor nas palavras com que ele terminou o cap. 22, livro I, da Summa Contra Gentiles: "Esta sublime verdade Moisés aprendeu-a do Senhor. QuandoMoisés perguntou ao Senhor: "Se os filhos de Israel me disseram: qual é o nome dEle? — que lhes direi?", o Senhor respondeu: Eu Sou Aquele que Sou. Dirás aos filhos de Israel: Aquele Que É enviou-me a vós" (Êxodo, 3: 13, 14). Por aí o Senhor mostrou que o seu nome próprio é Aquele Que É. Ora, os nomes foram criados para significar as naturezas ou essências das coisas. Portanto, o ser divino é a essência ou natureza de Deus" (C. G., I, 22, 10).

A solenidade do tom é inequívoca. Advertido pela sua curiosidade natural, um historiador de espírito perquiridor bem poderia perguntar-se por queTomás de Aquino, que habitualmente confirma suas conclusões, ao fim de cada capítulo,, citando nomes autorizados, ao fazê-lo para estas conclusões, não encontrou nenhum outro para citar, depois da própria Escritura, a não ser "alguns doutores católicos, que professaram a mesma verdade". Um deles é Hilário de Poitiers; outro, Boécio. Há casos em que Tomás não hesita em referir-se à autoridade de algum filósofo, principalmente Aristóteles, como concordes com a doutrina da Revelação. Não é este o caso, aqui. Tudo se passa como se Tomás se sentisse de tal modo no íntimo da verdade cristã sobre Deus, que qualquer tentativa de confirmá-la por alguma posição filosófica seria debilitar este ensino realmente "sublime". O primeiro princípio da Metafísica estava, aqui, em jogo; e, uma vez que a sabedoria humana fora transformada pela base, todas as noções fundamentais que se seguem imediatamente ao primeiro princípio estavam também destinadas a assumir novos e mais profundos significados.

A primeira dessas noções fundamentais que submeteremos ao nosso exame é a de criação.

Será o assunto do próximo capítulo, que investigará o lugar da existênc